Quando uma obra tão densa quanto Fronteiras do Universo tem sua adaptação anunciada, os fãs da obra original geralmente ficam preocupados. Isso porque, ao contrário do que pode parecer, os livros de Philip Pullman não são uma diversão infanto-juvenil leve em um mundo de fantasia. Por trás da ideia de universos interligados e humanos com criaturas que representam suas almas, His Dark Materials tem uma camada de críticas contra instituições religiosas e toca em temas densos que, felizmente, começaram a aparecer com mais força na segunda temporada.
Enquanto o primeiro ano tinha uma aura mais aventuresca, com Lyra (Dafne Keen) saindo para o mundo e fazendo parcerias com aeróstatas e ursos de armadura, o segundo ano é mais sóbrio, com a jovem encarando o que aconteceu com o amigo Roger e enfrentando seus maiores medos, como o reencontro com a Sra. Coulter (Ruth Wilson). Nesse caminho, é interessante perceber o quanto Lyra cresceu. Ainda que nem ela mesmo perceba isso (pelo menos, não o tempo todo), a garotinha que corria pelos muros de Oxford deu lugar a uma jovem já endurecida pelas dificuldades da vida.
Esse é um tema recorrente nos livros de Pullman e é mostrado também na figura de Will (Amir Wilson), que cresce ainda mais neste segundo ano. A série acertou bastante ao adiantar a apresentação do personagem para a primeira temporada. Assim, chegamos ao segundo ano do seriado ano já sabendo toda a responsabilidade que o garoto tem em suas costas (cuidar da mãe, esperar pela volta do pai) e vendo o quanto isso evolui quando ele se torna o portador da Faca Sutil, outro objeto extremamente importante nesse universo. Ainda que tenham caminhos diferentes, Will e Lyra são espelhos um do outro, complementos de uma jornada intensa e muito maior do que eles podem imaginar.
O segundo ano de His Dark Materials é, de várias formas, um reflexo dessa jornada. Enquanto Will e Lyra crescem, a narrativa também mostra amadurecimento ao não ter medo de tocar em temas densos e dar adeus a personagens importantes. Saem de cena mentores carismáticos que representam muito para os protagonistas e chegam outros nomes, como a curiosa Dra. Mary Malone (Simone Kirby), um nome bem conhecido dos fãs dos livros. É interessante e intenso acompanhar a jornada da personagem, que faz um contraponto com outros núcleos de His Dark Materials: enquanto o Magisterium (o que seria a igreja do universo de Lyra) está cada vez mais fechado em seus conceitos, a Dra. Malone tem a mente aberta para descobrir o novo sem medo e leva o público consigo em sua jornada.
Fruto proibido
Destino e livre arbítrio são dois dos temas mais importantes dos livros de Philip Pullman e a série da BBC/HBO trouxe estes conceitos sem pressa ao longo dos sete episódios da segunda temporada. Com tempo de tela suficiente, o seriado não corre em suas explicações e por isso torna alguns momentos realmente memoráveis, como quando a Sra. Coulter descobre que Lyra, na verdade, é Eva, aquela que, para muitos, é fruto da perdição da humanidade, enquanto, para outros, é o símbolo de conhecimento e libertação. Claro que as referências religiosas já estavam na história desde sempre, mas este nome muda tudo: o fruto proibido de Lyra é sua capacidade de ler o aletiômetro, um instrumento que lhe diz a verdade e lhe dá conhecimento - exatamente o que muitos não querem que ela tenha.
Outro ponto que traz este tema é a verdade sobre o Pó. Como citado acima, a Dra. Mary Malone é uma das pessoas que têm um papel importante a cumprir nessa história e ajudar Lyra em sua jornada. Durante suas pesquisas, ela descobre que tal substância tem consciência e é por meio dela que a pesquisadora se comunica com os Anjos, os mesmos a quem Lord Asriel (James McAvoy) pede ajuda no episódio final. Mas é Malone quem ouve a verdade sobre as entidades: os anjos buscam vingança e vão começar uma guerra. Como dito no começo deste texto, quem conhece a franquia de livros ficou receoso se a série de TV teria a coragem de abordar tais temas e é muito positivo chegar ao final da segunda temporada e perceber o cuidado com que tudo isso foi colocado na produção.
Também é impossível não elogiar a atuação de Ruth Wilson como a Sra. Coulter, em uma temporada quase que totalmente levada pela personagem. É Coulter que movimenta tudo, desde os bastidores do Magisterium nos primeiros episódios, até os seres de outro mundo já ao final da temporada. Sua luta interna, representada pela relação complicada com seu daemon, está em cada movimento e olhar da personagem. Ainda assim, Wilson consegue manter um mistério intenso sobre Coulter e a série chega ao final sem deixar claro se ela está contra ou a favor da filha. A relação conturbada entre as duas, aliás, rende um dos melhores momentos da temporada, com Dafne Keen mostrando todo o talento revelado em Logan.
Apesar de tantos pontos altos, o segundo ano de His Dark Materials tem alguns problemas narrativos. O primeiro deles diz respeito às crianças que vivem na cidade abandonada de Cittàgazze. Quando tal trama é apresentada, fica a percepção de que ela será importante para a jornada de Will e Lyra, mas nada maior acontece. Colocar a jovem Angelica (Bella Ramsey) como uma suposta “oponente” de Lyra diante das ameaças enfrentadas pela protagonista soa deslocado com o resto da história, que leva a protagonista para perigos cada vez maiores. O segundo ponto tem a ver com as bruxas. Ainda que façam parte da história, Serafina Pekkala (Ruta Gedmintas) e cia. chegam cedo ou tarde demais em momentos cruciais e sempre dão a sensação de estarem indo de um lado para o outro sem muito propósito.
His Dark Materials entrega uma boa temporada de transição em seu segundo ano, que deixou o terreno preparado para um grande encerramento na já confirmada terceira temporada. Ainda que tenha pontos a acertar, especialmente em relação às bruxas, que continuam muito presentes na história, o seriado da BBC/HBO provou que tem maturidade e força suficientes para falar de temas que incomodam, mas são extremamente relevantes. Ainda bem.