No estudo de dramaturgia que autores e roteiristas fazem durante a vida – direta ou indiretamente – uma das lições mais importantes é aquela que fala sobre como você precisa construir um elo de confiança com seu público. Muitos podem confundir isso com previsibilidade, mas não é disso que estamos falando. Quando você convence o espectador a embarcar na sua história, está criando com ele um laço de confiança e é baseado nisso que ele vai te seguir até o fim. Mesmo que você despiste ou não diga a verdade pura e simples no seu desenvolvimento, ao colocar tudo às claras, a sua fiel audiência precisa conseguir visualizar as razões pelas quais o mistério foi feito e o quão inteligente ele foi no processo narrativo.
How to Get Away With Murder foi construída baseada nos mesmos códigos narrativos de Damages (2007) e assim como ela, cometeu os mesmos pecados. Em Damages, até ali pelo terceiro ano, os criadores ainda conseguiram montar revelações que faziam sentido no contexto geral. Após isso, tudo virou pura enganação, o choque pelo choque. Em How to Get Away, o prazo de validade foi mais curto ainda. Era possível perceber a fraqueza dos roteiros já na segunda temporada. Mas, a presença de Viola Davis foi extremamente preciosa para o criador Peter Nowalk. Sem ela, talvez a série não tivesse conseguido existir por 6 anos. Há pelo menos três anos nem mesmo Viola conseguia segurar a relevância de uma produção que estava claramente desnorteada.
São as ciladas em que histórias sobre risco de morte constante se colocam... Para impressionar o espectador, mais e mais obstáculos e perigos são providenciados e a cada temporada, vai ficando mais evidente que ninguém ali ainda poderia estar vivo ou em liberdade. O universo de How to Get Away é absurdamente sangrento, mas a cada início lá estão os personagens na faculdade, como se nada tivesse acontecido. Quando chegamos ao meio da temporada, tudo isso é esquecido e começa o jogo de gato e rato que levará a extremos que serão amenizados no ano seguinte. Isso sem falar naquele que é o maior problema da série: chegamos a um ponto em que os mistérios são apenas uma forma de enganar nossas expectativas.
Viola no Saco
How to Get Away With Murder já não tem uma história concisa há muito tempo. Os episódios são amontoados de diálogos pretensamente tensos sobre armações e intrigas com os quais não nos importamos sob nenhuma hipótese. A série não respira, não busca a beleza da calmaria, não explora seus personagens numa frequência pessoal. Tudo precisa ter a ver com o mistério da temporada. Michaela (Aja Naomi King), Connor (Jack Falahee), Oliver (Conrad Ricamora) e Asher (Matt McGorry) são rasteiros, sempre repetindo as mesmas falas e comportamentos, como numa espécie de comédia bufa. Nada, absolutamente nada que lhes acontece serve para amadurecê-los. Se pudermos salvar alguém talvez possamos salvar Connor, o único que parece ter entendido que eles são tão ruins quanto Annalise e precisam pagar pelo que fizeram.
Se a história nos oferece tão pouco, os mistérios são a coroação do oportunismo mais idiotizado. Os famosos flashforwards que nos mostrarão o que acontecerá no futuro foram todos manipulados para nos fazer acreditar em mentiras. Sem uma boa história nas mãos, Peter tomou a decisão mais desonesta que um roteirista pode tomar e ao invés de explicar porque as cenas dos flashes aconteceram, ele as usou para nos fazer acreditar em mentiras. Passou vários episódios jogando com uma possível morte de Annalise e ela não estava morta. Depois mais alguns episódios jogando com a identidade do assassino de Asher e o dito cujo era um completo e absoluto coadjuvante. Não satisfeito, Peter voltou a jogar com a morte de Annalise e seu desrespeito chegou a tanto, que a verdadeira vítima usava uma roupa da mesma cor que ela no dia do suposto crime.
Ao contrário do que os envolvidos possam pensar, a revelação não monta quebra-cabeça nenhum. Trechos tendenciosos são escolhidos e ao serem expostos, não tem correlação nenhuma com as peças oferecidas. Tudo é vexatório. O nível de delírio é tanto, que ao tentar “voltar ao início” e falar novamente de Sam (Tom Verica), correlações com Frank (Charlie Webber) e Bonnie (Liza Weil) foram jogadas na tela sem nenhum discernimento e condenaram os personagens à danação eterna. Eles, grandes vítimas de circunstâncias incontroláveis, são castigados. Os alunos de Annalise, mimados e dissimulados, seguem sendo protegidos. A cereja do bolo é o flash com o enterro de Annalise, em que a presença de Wes (Alfred Enoch) fez parecer que o personagem iria ressurgir das cinzas. A explicação para isso era só outra piruetada gratuita.
Salva-se dessa última temporada, como sempre, a interferência de Viola Davis na construção de Annalise. Em seu monólogo final, ela abre mão do nome americanizado, da peruca de cabelos “aceitáveis” e fala sobre o que sempre esteve errado: suas máscaras e seu instinto materno imponderado. Ao tentar proteger seus alunos do que eles deviam ter enfrentado, criou monstros. Há muitas falhas no roteiro do final, mas ainda que eles tenham continuado a serem protegidos, foi ao menos coeso que não tivesse havido uma grande cena em que Annalise falasse sobre como os amava, já que tudo que havia entre eles era apenas tóxico. How to Get Away With Murder, no final das contas, falou sobre tudo que não é amor, tudo que não é amizade, tudo que não é justiça. Peter Nowalk traiu a confiança de seus espectadores e vai ser punido com a pena máxima no mundo da teledramaturgia: o esquecimento.