“Esta história é completamente verdadeira. Exceto pelas partes que foram totalmente inventadas”. As frases que aparecem no começo de cada episódio de Inventando Anna não são só uma piscadela atrevida para o espectador que conhece as regras dos filmes e séries “baseados em fatos”, mas também um aviso: nesta história, vamos circular por um universo de aparências, de beijinhos no ar e “amizades de iate”, de somas exorbitantes de dinheiro eletrônico trocadas de conta em conta sem nunca se materializar no mundo real, de empréstimos milionários cedidos na base da marca da bolsa com a qual o cliente entrou no banco e - principalmente - da fortuna da pessoa que o indicou para estar lá.
Para fazer esse ponto ainda melhor, Inventando Anna exibe essas duas frases iniciais não em um letreiro simples sobre uma tela preta, mas sim espalhadas por todo tipo de superfície da cidade de Nova York: fachadas de prédios, letreiros de metrô, manchetes de jornal em bancas, vitrines de lojas onde nada custa menos do que um par de salários mínimos. Não é só Anna Delvey (Julia Garner) que está mentindo, nos diz a série nos primeiros segundos de cada um de seus nove capítulos, lançados hoje (11) na Netflix: é o mundo ao redor dela que é baseado em e sustentado por irrealidades.
Para quem já não sabe, Inventando Anna se baseia na história inacreditavelmente real de Delvey, uma jovem de 25 anos, vinda de uma família russa de classe média, que passou anos enganando várias personalidades da elite econômica global e convencendo-os de que era uma herdeira alemã com milhões na conta. Além de viver uma vida de luxo, Anna passou muito perto (não importa o que seu advogado diga) de conseguir um empréstimo gigantesco de dois dos maiores bancos dos EUA para construir uma fundação de artes que a tornaria a anfitriã e curadora dos VIPs da sociedade nova-iorquina.
Quando a sua farsa foi por terra, a história da "herdeira falsa” foi registrada pela jornalista Jessica Pressler na revista New York, em um dos artigos mais lidos da história da publicação. Pudera: além de ser uma daquelas histórias fascinantes e saborosas de true crime, cheia de detalhes sórdidos e reviravoltas mirabolantes, esta é também uma história que diz algo profundo e incômodo sobre a fundação instável (para usar um termo bem generoso) na qual a estrutura de classes da nossa sociedade está construída, sobre o nível surreal, ilógico da riqueza de alguns, e do poder que eles acumulam por causa dessa riqueza, mesmo que ela seja baseada em símbolos vazios, e por isso facilmente emuláveis.
Inventando Anna ficcionaliza a repórter que cobriu a história de Delvey, transformando-a em Vivien Kent (Anna Chlumsky) e dando a ela um histórico e um leque de conflitos emocionais que são parcialmente reais, parcialmente extrapolados pelos roteiristas. É uma forma inteligente, já de cara, de atrair para a série aqueles que já leram e releram o artigo original, que já pesquisaram cada detalhe sobre Delvey após caírem na toca do coelho que é a história dela. Inventando Anna nos dá mais: mais minúcias, mais personagens, mais reviravoltas, mais subtexto, mais humanidade, mais oportunidade de entender quem ela é e o que ela significa.
É ao alimentar essa angústia existencial e moral causada pela história de Anna que a produção da Netflix triunfa. No fim das contas, esta é uma série que, para retratar uma sociedade em crise consigo mesma, constrói personagens dolorosamente humanos, divididos entre um conceito de responsabilidade ética martelado em suas cabeças desde que se conhecem por gente e o impulso irresistível de infringi-lo porque, bom… ele nunca foi tão justo e tão correto assim, se você pensar só um pouquinho nele. É eletrizante ver as pessoas que Anna atrai para sua órbita lutarem com isso, porque assistir à história de Anna é lutar com isso também.
Mas não se engane: Inventando Anna sabe que foi feita em uma era onde uma grande história é a base indispensável do bom entretenimento, mas não é tudo para que ele funcione. Com vários episódios dirigidos por David Frankel (O Diabo Veste Prada), a minissérie é um produto visual lustroso, usando e abusando de telas divididas, freeze frames e cortes rápidos para manter a bola rolando satisfatoriamente durante os extenuantes 60 ou 70 minutos de cada episódio (o finale tem 1h22). Ao mesmo tempo, o elenco é sólido e faz justiça aos seres humanos que o roteiro constrói com tanto carinho - mas, no melhor estilo Anna Delvey, a protagonista Julia Garner não se deixa ofuscar por ninguém.
O sotaque é exatamente o quão afetado deveria ser (e, diga-se de passagem, muito divertido de se ouvir). Garner fala como uma imigrante russa, uma herdeira alemã e uma valley girl californiana, tudo ao mesmo tempo, o que a ajuda a ser irresistível em seus diálogos mais venenosos, mas também dá a oportunidade de modular os nem tão raros momentos de vulnerabilidade da personagem. Quando a Anna Delvey da série chora, confia em alguém, se frustra com as falhas dos seus esquemas, esbraveja sobre ser “uma mulher de negócios de verdade”, ou simplesmente fica bêbada com sua amiga no quarto de hotel, ela é real. Garner não nos deixa duvidar disso nem por um segundo.
E Delvey ser real, por incrível que pareça, é fundamental para que Inventando Anna funcione tão bem. Conforme a série destrincha quem sofreu (ninguém) e quem se beneficiou (todo mundo) com as fraudes dela, as perguntas que ficamos mastigando durante os créditos são duas. Primeiro: se um sistema é tão fácil de enganar, será que ele é um bom sistema? Segundo, e talvez mais importante: quando foi que, imersos nesse universo de símbolos e irrealidades, começamos a punir as pessoas reais que o desafiam?