Um Chinês Americano (American Born Chinese), de Gene Luen Yang, foi publicado originalmente em 2006. Naquele ano, ganhou inúmeros prêmios e foi a primeira história em quadrinhos a ser indicada ao National Book Award, um dos mais importantes prêmios literários dos Estados Unidos. Com tanto prestígio e vendo as HQs já se solidificando como matéria-prima comum em Hollywood (lembrando que a atual onda começou em 2000, com os X-Men), não seria de se espantar que alguém tentasse adaptar o título para um produto audiovisual. E por anos o produtor Melvin War tentou, insistiu e ouviu inúmeros "não" do autor.
E curiosamente, em 2023, ano em que dois atores de origem asiática - Michelle Yeoh e Ke Huy Quan - ganharam o Oscar pelo também premiado Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, a HQ ganha sua merecida adaptação na Disney+, rebatizada no Brasil de A Jornada de Jin Wang. E como estamos falando de multiversos, parece que tudo se alinhou em todo lugar ao mesmo tempo, porque coincidentemente Michelle Yeoh e Ke Huy Quan estão também no elenco da série (eles gravaram suas participações antes do lançamento do filme dos Daniels), em papéis menores, mas muito importantes para a trama.
Diferente da HQ, que trazia três histórias paralelas, a série tem uma narrativa mais linear - com exceção a um episódio inteiro em flashback. O tal Jin Wang (Ben Wang) do título nacional continua sendo o protagonista, um chinês nascido nos Estados Unidos de pais imigrantes - como deixa bem claro o título original. Chega à sua nova escola um menino chinês, Wei-Chen (Jimmy Liu), que por ser chinês é colocado sob sua tutela. Mas Jin, tentando se encaixar no novo habitat, quer fazer amizades com os populares do time de futebol, sentar ao lado da menina loirinha nas aulas, não ficar cuidando de um estranho. O que ele não sabe é que o visitante não vem da China, mas do céu. Ele é filho do Rei Macaco (Daniel Wu) e está aqui para recuperar um artefato que foi roubado e coloca em risco toda a existência pacífica dos céus.
A história da série é bastante diferente do que se viu nas HQs, mas segue os mesmos princípios de questionar o caminho das pessoas ali, suas decisões, incertezas e, claro, buscar seu amadurecimento. E ambos - HQ e série - andam de mãos dadas para denunciar racismo, preconceitos e estereótipos contra pessoas asiáticas. O cara que não sabe falar direito, o nerd bobão, o desengonçado - todos estão representados no personagem de Ke Huy Kwan, um ator que ficou marcado por uma série de TV do passado que ganhou uma nova onda de seguidores com o relançamento no streaming. No especial que reúne o elenco da série dentro da série, vemos uma dura crítica a tudo isso e um discurso que seria premunitório ao que Kwan fez este ano no Oscar.
Mas estamos falando de uma série adolescente e com temática asiática, então espere também por muita ação. Quem conhece os filmes chineses (e as produções estadunidenses que beberam desta fonte) vai se deliciar com muitas referências, desde a perseguição inicial que mostra personagens "correndo no ar", o jeito de filmar e até vertentes de artes marciais como o Zui Quan, um dos estilos de Kung-Fu que imita os movimentos de um bêbado.
Rostos e nomes conhecidos também pipocam não só atuando, mas também nos bastidores. Lucy Liudirige o episódio 6 e Destin Daniel Cretton (Shang Chi) comanda o primeiro e o último capítulos, além de assinar a produção executiva. Toda esta preocupação em ter pessoas asiáticas no projeto acaba por resultar em uma série que surpreende e cativa - principalmente quem, assim como eu, tem origem no oriente. Em vários momentos, eu ficava esperando o protagonista se dar mal, não por estar sendo testado, mas por ser asiático. O protagonismo dos meninos brancos está no inconsciente e só de ter me mostrado isso na prática, A Jornada de Jin Wang se provou não só dele, mas de milhões de pessoas que passaram mais de um século não se vendo como heróis das histórias. Que bom que isso está mudando!