Mike Flanagan não é um cara complicado. Criador de A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly, e um dos nomes de maior destaque do horror atual, ele cria obras que servem para reafirmar verdades fundamentais e simples, mas que esquecemos com facilidade no dia a dia. De Residência Hill a Missa da Meia-Noite, Flanagan interroga a inevitabilidade da morte, a futilidade cósmica da vida, a significância profunda das conexões que fazemos enquanto estamos por aqui.
Em muitos sentidos, o diretor e roteirista resumiu sua filosofia muito bem na frase mais famosa de Residência Hill: “Eu te amei completamente, e você me amou da mesma forma. O resto é confete”. Missa da Meia-Noite é uma longa, tortuosa, angustiante, sangrenta, enervante jornada até essa realização - em palavras diferentes, é claro, mas a mesma realização. Difícil culpá-lo por se repetir, quando a mensagem é tão verdadeira, e tão tocante, todas as vezes que é reiterada.
É claro que Flanagan tempera sua nova obra com ângulos diferentes de reflexão, cores diferentes de humanidade. Missa da Meia-Noite, pela própria natureza de sua trama, dedica muito tempo a uma meditação cuidadosa sobre fé, e como ela é capaz de desenterrar, nos seres humanos, a bondade mais pura e a amargura mais profunda da nossa natureza. A minissérie não é “anti-fé”, mas alerta sobre a forma como a retórica religiosa pode ser facilmente transformada em arma de opressão. Uma opressão banal, mesquinha, e ainda mais enfurecedora por isso.
Nosso protagonista aqui é Riley Flynn (Zach Gilford), que retorna para a minúscula ilha onde nasceu após passar quatro anos na prisão por atropelar e matar uma mulher enquanto dirigia embriagado. Sua chegada coincide com a do padre Paul (Hamish Linklater), que substitui, em circunstâncias para lá de suspeitas, o monsenhor que comandava a paróquia local há décadas. Quando o novo sacerdote se mostra capaz de feitos aparentemente milagrosos, o delicado tecido social da ilha começa a se desfazer.
No desenrolar desse mistério, o horror é mais ferramenta do que objetivo. Flanagan, que dirige a série toda e coescreve os episódios com vários parceiros diferentes, lança mão de imagens recorrentes do gênero (sobre as quais é impossível se estender sem dar grandes spoilers da trama), e demonstra mais vontade de se aproximar do kitsch do que demonstrou em qualquer uma das temporadas de A Maldição, mas suas incursões pelo horror explícito, confrontador, são breves e incidentais.
Ao invés disso, para segurar a atenção do espectador, a minissérie se apóia em um elenco tão preciso em suas construções individuais quanto entrosado, fluente em uma linguagem comum. Hamish Linklater articula com particular brilhantismo as contradições do padre Paul, fundando-o em um exaspero existencial muito comum, que explode em frustração e fúria em momentos chave da trama. Sempre um coadjuvante confiável, mas quase nunca excepcional, Linklater ganha em Missa da Meia-Noite um espaço quase inédito em sua carreira, e mostra que pode fazer milagres (trocadilho totalmente intencional) com esse espaço.
Enquanto isso, Samantha Sloyan vibra com o mais puro desdém em tela na pele da “carola” local, Bev Keane, a grande vilã da história; Kate Siegel (esposa de Flanagan) mais uma vez carrega o centro nervoso e emocional de uma obra do marido com dignidade; Zach Gilford expressa dor e culpa profundas com seu protagonista machucado; e Rahul Kohli coopta de forma inteligente a gentileza e carisma que já havia demonstrado em Mansão Bly para um papel muito mais significativo, e representativo, do que aquele.
E ainda bem que o elenco é tão brilhante, porque Missa da Meia-Noite deriva a maior parte de sua tensão das relações entre os personagens. Quando não estão se estendendo em belos e intrincados monólogos literários, Flanagan e cia. apostam em interações breves que exploram a eletricidade própria de uma comunidade pequena, que compartilha histórias, moralidades e julgamentos com muito mais intensidade. Os subtextos de cada relação saltam aos ouvidos nesses diálogos, especialmente para quem já viveu em um lugar assim.
E é desses subtextos que nasce o horror humano da minissérie. Na forma como escreve, dirige e edita Missa da Meia-Noite, Flanagan cria um desconforto elemental, muito mais profundo e identificável do que poderia ser em uma abordagem mais tradicional do gênero. A coisa mais aterrorizante que uma obra de ficção pode fazer, no fim das contas, é muito simples: nos dar um espelho para que enxerguemos quem somos, ou podemos ser, quando esquecemos o que realmente importa.