De um jeito ou de outro, as séries do Marvel Studios encontraram suas razões de existir no tão reverenciado cronograma de lançamentos do MCU. O luto intenso de Wanda (Elizabeth Olsen), rico e interessante enquanto desenvolvimento de personagem, se provou apenas um pretexto para colocá-la como vilã em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. A jornada de autodescoberta de Loki (Tom Hiddleston), encarando a si mesmo de modo tão literal, foi reduzida à apresentação do tal grande antagonista da vez, o Kang (Jonathan Majors), em um monólogo de poucas sutilezas. A dinâmica de buddy cop entre Bucky (Sebastian Stan) e Sam Wilson (Anthony Mackie) em Falcão e o Soldado Invernal, por sua vez, foi uma longa caminhada para não deixar dúvidas de que o Capitão América agora é outro com a vinda de um quarto filme da franquia.
Ainda que repletas de boas intenções e, em alguns casos, com olhares inéditos, gentis e intrigantes a velhos conhecidos, a Casa das Ideias falhou ao se esquecer que cada título deve, também, funcionar em si mesmo. Assim, em vez de exaltar seus heróis no panteão que, em teoria, eles já ocupam na cultura pop, a Marvel preferiu diminuí-los em nome do hype.
É um alívio, portanto, ver que esse ciclo vicioso foi quebrado na adorável Ms. Marvel. Sem se preocupar com a promessa no horizonte de colocá-la ao lado de Carol Danvers (Brie Larson) em The Marvels, o criador Bisha K. Ali fez o que, convenhamos, é básico: focou na jornada da sua protagonista e a explorou em toda a sua complexidade. O chamariz da série, portanto, não está na vilã da vez ou na ameaça interdimensional que põe em risco a humanidade — muito menos na antecipação de qualquer que seja a história do filme que sai só em 2023. Está, na verdade, no entusiasmo, inocência e inexperiência da sua Kamala Khan, e as revelações e as conexões com o restante do universo compartilhado vêm como consequência disso.
Não dá para negar que Ms. Marvel largou com vantagem já com a escalação de Iman Vellani como a protagonista. Afinal, atriz e personagem compartilham a empolgação genuína de ser uma super-heroína e, mesmo sem saber todos os meandros que o posto pressupõe, ambas compensam qualquer eventual falta de aptidão com muito carisma. Esse é, sem dúvida, um dos grandes trunfos da produção, considerando que a série não escapa do ritmo inconstante que, infelizmente, também se tornou marca registrada das produções do Marvel Studios. No entanto, graças a presença encantadora de Vellani, até o mais arrastado dos episódios — sim, estou me referindo ao penúltimo, intitulado “Mais Uma Vez” — ou as cenas de ação mais ou menos ficam pequenos se comparados à experiência geral que a série proporciona.
No entanto, o diferencial de Ms. Marvel está mesmo na maneira como a série representou com sensibilidade, bom humor e, por vezes, firmeza o fato de Kamala ser parte da chamada segunda geração de imigrantes. É claro que se tratando de parte considerável da identidade da personagem, a Marvel não poderia escapar de retratar a dualidade de nascer e crescer nos Estados Unidos, enquanto mantém tradições paquistanesas. Mas é surpreendente como o estúdio a abraçou por inteiro, em todas as suas formas, e a tornou parte integral da sua trama, seja com um número de dança à la Bollywood, abrindo as portas de uma mesquita para o público mainstream ou literalmente questionando a versão para inglês ver de como transcorreu a Partição. É uma abordagem, em muitos sentidos, educativa, mas não de modo pedante ou documental. É, na realidade, a materialização de como esse tipo de retrato é raro nas produções ocidentais de grande alcance, e como pode ser também enriquecedor, inclusive do ponto de vista estético. Nesse sentido, vale dizer, Ms. Marvel oferece uma saída colorida e lúdica para o cinza decepcionante que domina a Marvel nessa fase 4, pertinente a qualquer história dominada por alunos do Ensino Médio — até porque Ms. Marvel é tão série teen, quanto é uma história de origem clássica de herói, e por isso sua experimentação com quê de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas foi tão bem-vinda.
Com Kamala livre para aprender por conta própria — e, portanto, sem estar à sombra de ninguém como certo Peter Parker (Tom Holland) —, ao mesmo tempo que tem crushes e descobre o mundo longe do conforto do colo dos pais, Ms. Marvel funciona, de fato, como a introdução da heroína ao universo cinematográfico e aquece organicamente para sua volta num futuro próximo. O seriado é perfeito? Não, longe disso. Mas, por mais que seu conflito central funcione mais enquanto conceito do que propriamente na sua construção, a série lembra o espectador que ser super, embora tão lugar-comum hoje em dia, ainda pode ser divertido. Basta ser original e priorizar o que a Marvel já fez tão bem: focar no lado humano dos seus ídolos.