“Temas são para redações da oitava série.” A declaração infame do roteirista David Benioff ecoou pela cabeça dos fãs de Game of Thrones quando a última temporada da série, em 2019, foi recebida de forma quase universalmente amarga por seus desvios desleixados de caracterização e suas resoluções pífias para disputas e destinos nas quais a série nos convenceu a investir tempo e afeto por anos a fio. Bom, a obra sucessora de Thrones na carreira de Benioff e do seu parceiro criativo, D.B. Weiss, mostra que a crença estúpida demonstrada naquelas poucas palavras continua absolutamente inabalada.
O Problema dos 3 Corpos retorce a trilogia de livros de Cixin Liu, marcadamente chinesa em suas correntes de reflexão histórica espelhadas em conflitos íntimos, para se encaixar naquilo que está mais em voga nas reuniões de pitch das plataformas de streaming: uma “história universal”, o que quer que isso realmente signifique em 2024. Permanece a personagem Ye Wenjie (Zine Tseng na juventude, Rosalind Chao na velhice), que vê seu pai ser assassinado pela Guarda Vermelha durante a Revolução Cultural Chinesa e acaba sendo recrutada para trabalhar em um laboratório do governo comunista, que secretamente procura por vida extraterrestre. Quando finalmente recebe uma mensagem de volta dos alienígenas, no entanto, a desiludida Wenjie responde chamando-os para vir até a Terra nos conquistar.
Corta para 2024, quando um grupo de amigos cientistas formados em Harvard, de diferentes ascendências mas baseados em Londres, se vê lidando com as consequências da escolha de Wenjie, e do que isso pode significar para o futuro da humanidade. Muito foi feito nas redes sociais, desde a estreia da série na Netflix, sobre o quão avançados são os conceitos discutidos pelos personagens, e quão profundo é o mergulho que a série faz nas possibilidades tecnológicas e estratégicas que estariam envolvidas na defesa do planeta contra uma invasão alienígena - mas a verdade é que O Problema dos 3 Corpos é bem didático, bem avesso a linguagem técnica, e bem dado a ilustrações dinâmicas de seus problemas científicos. E essa é, de fato, a melhor parte da série toda.
Especialmente ali no miolo da temporada, e ainda mais especificamente no episódio “Destroyer of Worlds” (1x03), O Problema dos 3 Corpos prospera como um Telecurso 2000 de orçamento milionário e bom humor inesperado, que faz muito bem ao soltar a imaginação do diretor Andrew Stanton (Wall-E, Procurando Nemo) das amarras do realismo ao mergulhar no mundo de realidade virtual do jogo criado pelos alienígenas para recrutar humanos para sua causa. Conforme Jack (John Bradley) e Jin (Jess Hong) viajam pelas fases do jogo, encontrando versões paródicas de grandes cientistas e se infiltrando em impérios que invariavelmente possuem uma forma de execução caricatamente violenta para infligir aos seus traidores, O Problema dos 3 Corpos não só “gameifica” sua ciência para um público leigo, como também se mostra acidamente ciente dos egos incomportáveis que guiam seus personagens, assim como guiaram os grandes cientistas antes deles.
Dizia Oscar Wilde sobre profissionais da ciência e outras áreas exatas que “podemos perdoar a um homem por haver feito uma coisa útil, contanto que não a ame”. O Problema dos 3 Corpos está lidando (e, nos seus melhores momentos, sabe que está lidando) com um grupo de personagens que flagrantemente desrespeita essa regra, e com a devastação emocional que se espalha por suas vidas por causa disso. Eis aqui uma rodinha de amigos que, sem nenhuma exceção, não é capaz de amar nada nem ninguém (inclusive, uns aos outros) mais do que amam seu próprio intelecto, e as coisas que são capazes de realizar com ele. Daí que Will (Alex Sharpe) é largamente deixado para definhar sozinho quando é diagnosticado com câncer, tendo em vista que os amigos estão consumidos na missão de salvar a humanidade de 400 anos no futuro.
E o mais frustrante é perceber que O Problema dos 3 Corpos passa tão perto, com tanta frequência, de entender e apontar a dor que é criada e intensificada nesse conflito entre íntimo e coletivo. A série vive verbalizando o questionamento das prioridades de seus personagens, mas Benioff e Weiss (os episódios que eles assinam sozinhos são os que mais fazem isso) só usam esse questionamento para chegar em uma justificativa heroica. O que a série nunca percebe é que o único discurso emocional genuíno que encontra em seus oito episódios é aquele incluído sorrateiramente no jogo dos alienígenas - um abraço sardônico do egoísmo mal-disfarçado que guia as ações daqueles que, apavorados ou inadequados demais para construir relações verdadeiras com aqueles ao seu redor, fingem ser dedicados a um “bem maior” que já escapou e muito das suas mãos.
Também dizia Oscar Wilde, completando aquela mesma frase de alguns parágrafos acima, que “a única desculpa de haver feito uma coisa inútil é amá-la intensamente, e toda arte é completamente inútil”. O Problema dos 3 Corpos, por melhor que seja em explicar e inventar sua ciência, não vai mudar o rumo científico da sociedade - é só uma série da Netflix, e o potencial transformador da narrativa não vai muito além de certo ponto de motivação pessoal e, com sorte, mobilização coletiva. O que ela é, portanto, é arte (e, como tal, completamente inútil). E o que falta a ela, portanto, é amor.
Se o conceito parece piegas… bom, paciência. É por amor a esse empreendimento inútil da arte que inúmeros artistas com o passar dos séculos criaram personagens profundamente falhos e cruéis, mas também profundamente capazes de afeição. É por amor que atores se aproveitam do espaço de respiro dado por esses personagens (um espaço que o elenco muito capaz de O Problema dos 3 Corpos simplesmente não tem) para preenchê-los de experiências pessoais e forasteiras que façam sentido para eles mesmos e para o público. É por amor que as histórias que contamos dizem alguma coisa - coisas que convencionamos chamar, veja só, de temas.
E eu sinto muito, Sr. Benioff, mas não dá para contar uma história sem temas, porque histórias sempre dizem alguma coisa. O trabalho de contá-las faz um discurso emergir, e esse discurso é consequência das decisões que o contador toma nelas - O Problema dos 3 Corpos, por exemplo, é vítima do próprio cinismo e da própria incapacidade de refletir sobre si mesma. O que ela acaba dizendo, no fim das contas, é que os humanos são todos criaturas vaidosas, descuidadas consigo mesmas e umas com as outras, cheias de ambições de proporções tão megalomaníacas que nem cabem na própria Terra, mas cegas para o que as aflige em um nível muito mais fundamental, interpessoal, nuclear (não no sentido da bomba, mas do núcleo do que é ser humano).
E pode até ser que tudo isso seja verdade. Mas, se for a única verdade sobre nós, a verdade fundamental sobre nós, a verdade que sobrepõe todas as outras verdades, por que diabos continuamos aqui? No mundo de Benioff e Weiss, a chegada dos San-Ti não poderia vir cedo o bastante - até porque nos pouparia da decepção inevitável para a qual sua nova criação está se encaminhando, como se predestinada a repetir os erros da antecessora, desde este início.