Em um momento raro de intimidade com Carmy (Jeremy Allen White) em O Urso, Syd (Ayo Edebiri) se solta e pergunta ao agora sócio qual foi a sensação de ser reconhecido com três estrelas Michelin. Para ela, essa seria uma grande realização profissional e, portanto, motivo de alegria e orgulho. Mas, como quem segue a cartilha do gênio miserável, o protagonista não vê qualquer satisfação. Na realidade, para ele, foram 10 segundos de pânico, seguidos por um forte senso de responsabilidade. “Meu cérebro faz essa coisa bizarra de ignorar qualquer sensação de alegria e se agarrar apenas ao pavor”, descreve, rindo da própria melancolia, conforme compara a conquista a mais um dia estressante no trabalho.
Por mais pessimista que soe a constatação, a clareza com que Carmy reconhece seu modus operandi tão no início da temporada dá até esperança de que, dessa vez, o protagonista vá se distanciar do seu caráter trágico e quebrar seu ciclo vicioso — isto é, parar de buscar a perfeição em detrimento do seu bem-estar. Mas, mais do que um foreshadowing dolorido do seu desfecho, o momento é simbólico do que o segundo ano coloca diante de todos seus personagens, sem exceção. Com o restaurante em obras e, portanto, sem nenhuma garantia além da expectativa de um futuro favorável, cada um transforma a cozinha na sua panela de pressão particular. O Urso deixa de ser, então, a única razão do caos e passa a operar como um vetor dos seus turbilhões internos — e fica a cargo dos chefs encontrar uma maneira de fazer desse limão uma limonada.
Para Carmy, o limão não é a nova dívida com o tio Jimmy (Oliver Platt), o prazo absurdamente apertado para lançar O Urso, nem a teimosia agressiva de Richie (Ebon Moss-Bachrach) — muito embora todos eles o preocupem, de uma forma ou de outra. Na realidade, em um cenário conturbado e de altos riscos como esse, o chef encontra paz nos braços de uma velha amiga de infância, Claire (Molly Gordon), algo tão atípico para ele que seu efeito desestabilizador é imediato. De repente, o profissional obcecado deixa a atenção às minúcias em segundo plano e começa a experimentar a vida de fato. O preço é evidente: ele mal consegue lembrar um nome de fornecedor, muito menos cumprir uma simples tarefa, como consertar a maçaneta do freezer. No entanto, a recompensa também é inegável. Pela primeira vez, os olhos tão tristes de Jeremy Allen White começam a ter mais fagulhas do que pesar.
A transformação dele é gradual e, muitas vezes, acontece às margens da trama principal. Mas, novamente, o criador e diretor Christopher Storer confia na fisicalidade do seu elenco para estabelecer seu cabo de guerra interno, e deixa só o sentimento mais superficial explodir. Por isso, na felicidade do Carmy existe uma insegurança quase infantil, confusão e desapontamento. Em contrapartida, na frustração pertinente de Syd há também medo, ansiedade e ciúmes não ditos. Mas as conversas entre eles são pragmáticas, e só em momentos muito pontuais os personagens deixam transparecer para eles mesmos seus sentimentos.
O Urso, contudo, não deixa o espectador alheio às razões para tanta hesitação e atrito, e dedica às vezes episódios inteiros aos membros da equipe. A antes tão teimosa Tina (Liza Colón-Zayas), por exemplo, abaixa a guarda e se permite começar de novo para fazer a “Jeff” Syd orgulhosa. Já nas mãos do diretor Ramy Youssef, o intercâmbio de Marcus (Lionel Boyce) na Dinamarca ganha ares de calmaria antes da tempestade — um episódio delicioso também por retomar a ênfase aos preparos, mas em um tom inédito: rígido, mas não tenso. Ainda assim, o grande destaque não poderia ser outro que não Richie. Assombrado pela sua falta de propósito e inibido pela sua insegurança, o primo vai trabalhar em um restaurante de alto nível e descobre que não era punição que Carmy reservava a ele, mas sim a ajuda de que ele tanto precisava. De novo, Ebon Moss-Bachrach transborda carisma e ganha o espectador — só que, dessa vez, não na base do grito, e sim ao som de Taylor Swift.
No geral, a segunda temporada de O Urso se propõe a tirar todos da sua zona de conforto e apresentar alternativas à cozinha frenética que criaram até ali, como se a reconstrução do restaurante, caótica e cheia de imprevistos, fosse uma metáfora para o recomeço conturbado da própria equipe. Para isso, a série recorre a combinações surpreendentes — a catarse embalada por "Love Story" é apenas um exemplo — , que repetem a proposta por trás das câmeras, com o cuidado de trazer ineditismo, mas sem se descaracterizar. Por exemplo, as sequências na cozinha, embora menos recorrentes, seguem rápidas e decisivas, mas passam a ser mais simbólicas: o cuidado com que Marcus cria e executa suas sobremesas são reflexo do seu perfil zeloso; por outro lado, os numerosos testes falhos de Syd e Carmy para o novo menu sugerem sua dissonância. O ritmo dos episódios se torna levemente mais devagar, mas a tensão segue alta graças a closes que, mais do que nunca, valorizam as performances do seu elenco. Quer dizer, O Urso também não escapou de algum nível de reinvenção.
Infelizmente, no caso específico de Carmy, os alicerces são bem mais frágeis, e superar padrões de comportamento, mais complexo. Em vez de recorrer à sutileza, Storer explica o porquê disso em um episódio memorável, mas que faz o plano-sequência marcante da temporada anterior parecer contido e tranquilo.
São em quebras de expectativa como essa que Christopher Storer revela a força do seu texto, assim como enfatiza a precisão do casting. Porque, por mais grandiosas que sejam as participações especiais em “Fishes” — os premiados Jamie Lee Curtis e Bob Odenkirk são só o começo da lista das adições desta temporada —, elas não distraem do que está em jogo, isto é, um jantar de Natal em família que mais parece um campo minado. Naquele contexto, tudo, desde os preparativos até a refeição em si, representa um risco, porque agradar a matriarca dos Berzattos é impossível — e, para desagradá-la, basta uma vírgula fora do lugar. Mais uma vez apostando em uma experiência imersiva, Storer faz do episódio o trampolim para concluir que, no fundo, o ato falho que encerra o arco de Carmy era uma tragédia anunciada.
Sem ser óbvia ou ficar no lugar-comum, O Urso desmonta o mito do gênio infeliz para todos, exceto para Carmy, que sozinho é incapaz de fugir dos próprios fantasmas. É cíclico, assim como qualquer recuperação, e essa é a tragédia de que ninguém é capaz de escapar. Mas se o segundo ano deixa algo claro para o espectador é que felicidade e pânico podem ser faces da mesma moeda — e se a série precisar de mais temporadas para que seus protagonistas notem a diferença, valerá a pena.