Desde a divulgação de seu primeiro trailer, a minissérie Olhos que Condenam se apresenta como um projeto incomum quando comparada a boa parte das obras desenvolvidas para colocar luz sobre os problemas do sistema carcerário, judiciário e - por que não - social norte-americano quando se trata de julgamento racial.
Dirigida por Ava DuVernay, - indicada ao Oscar de Melhor Direção, em 2014, por Selma - que também integra o time de roteiristas composto por Robin Swicord (O Curioso Caso de Benjamin Button) Attica Locke (Empire), Yusuf Hassan e Michael Starrbury, a produção entrega em quatro episódios uma história repleta de nuances.
Uma obra que, de forma direta, consegue fazer com que a audiência se relacione com cada um dos personagens retratados e a dificuldade que cor, classe social e local de onde vêm, invariavelmente, acarreta em uma sociedade acostumada a utilizar do viés racial/cor da pele como fator de inocência, merecimento ou monstruosidade/culpabilidade.
Com isso em destaque, DuVernay conta - em pouco mais de cinco horas - a história de cinco jovens (quatro negros e um latino) que são acusados, sem nenhuma prova, de estuprar uma jovem branca de classe-média, no Central Park, em Nova York. A partir desse ponto tem início uma caçada por culpados - que precisam confessar e receber punição rapidamente.
Por meio de uma narrativa centrada não só na apresentação da história dos personagens, mas também preocupada em dar destaque a alguns detalhes do jogo de interesses da polícia e seus agentes, a série tem seu início marcado por um ritmo acelerado, desenvolvido graças a sobreposição de acontecimentos que evidenciam como o ego dos agentes de justiça em conjunto com a “oportunidade” da fama molda toda a conduta referente à apuração do caso. Esses elementos formam a receita ideal para criar um show midiático no qual os condenados são as pessoas que já vêm com o carimbo de culpa.
E é desse ponto que a trama conversa de forma mais clara com o título em inglês When They See Us (Quando eles nos veem). Ou seja, quando eles nos enxergam, nós somos criminosos e culpados desde o primeiro momento, principalmente se estivermos fora do espaço delimitado - nesse caso, fora do Bronx, passeando pela área nobre de Nova York.
A partir de então somos inseridos em uma sequência de situações que se desenvolve por meio das ações da promotora de justiça de Nova York, Linda Fairstein (Felicity Huffman), que poucas horas depois do acontecido no parque passa a chamar os jovens - que seriam interrogados como testemunhas - de animais, e muda o status de todos para suspeitos.
Essa mudança gera uma força-tarefa focada na extração das confissões dos jovens, a todo custo, com a polícia buscando por pessoas que se encaixem na narrativa roteirizada pelo departamento para que seja possível julgá-los, condená-los e encerrar o caso.
Depois desse processo, o choque vem rápido. DuVernay mostra com agilidade e intensidade como a polícia arrasta cada um dos garotos para a delegacia e os submete a abusos morais e físicos, sem que pais e responsáveis estejam presentes. Nesse momento, a opção por planos próximos, incomoda, justamente por não permitir que os olhos se desviem da ação, da tortura física e psicológica que homens formados impõem aos jovens com idades entre 14 e 16 anos, colocando o espectador de frente com o olhar e a sensação de pânico de cada um dos personagens.
As ações para conseguir a confissão acontecem de forma arbitrária e tem como fator de desequilíbrio não só os policiais e a promotora, mas também a promotora de justiça da Procuradoria Distrital de Nova York, Elizabeth Lederer (Vera Farmiga), que faz parte do time que coleta os depoimentos e instrui os policiais sobre o que precisa ser registrado para que as informações tenham apelo para a condenação do júri.
Com tudo isso apresentado somente na primeira hora da série, o incômodo dá o tom e não para de crescer, minuto a minuto, culminando com um dos diálogos mais doloridos que uma criança pode se submeter:
“Por que eles nos tratam assim?”.
“De que outra maneira eles iriam nos tratar?”.
A espetacularização como aliado de uma condenação injusta
A partir daí, o ritmo acelerado com que os momentos mais intensos vão sendo colocados na tela surpreende. Se no início, o contato para entender um pouco do lado humano de cada personagem é apresentado de forma muito rápida, a jornada de desumanização de cada um deles, por parte de quem os acusa e de quem os mostra para o público comum, acontece de maneira ainda mais intensa.
De um lado temos o frisson da imprensa norte-americana (não muito distante do que vemos hoje no Brasil), trabalhando sobre visões preestabelecidas, tratando o caso não como algo a ser compreendido e investigado (apesar de todas as indicações de que algo está errado), mas simplesmente esperando a condenação de um grupo de jovens negros e cobrando esse resultado com uma moral e abordagem distorcida: uma punição rápida para confirmar o que grande parte do público queria ver.
Até Donald Trump, em imagens da época, aparece pedindo o retorno da pena de morte ao estado, algo que não acontecia desde 1963, e mostrando que seu conceito de compreensão humana sempre foi distorcido ao afirmar que os “negros têm muitos privilégios”.
Como contraponto dessa fala, é possível acompanhar a reação das mães e de como uma leitura social básica, feita de cima para baixo - como parte dos privilégios de ser branco, rico, entre outras coisas - simplesmente faz com que a ideia de soluções “simples” sejam ventiladas como algo oportuno dentro de uma sociedade complexa e que tem como parte de uma situação extrema - é importante reforçar - a cor da pele, a origem dos acusados e suas situações sociais como fatores preponderantes na relação como a sociedade os vê e os julga.
Até esse momento, enquanto o público acompanha o desdobramento dos fatos que irão levar os cinco jovens à prisão, mesmo com uma narrativa impactante, DuVernay não perde a mão. Em conjunto com o diretor de fotografia Bradford Young, ela encontra equilíbrio na forma de mostrar a história, seja apresentando uma conversa dramática, seja conduzindo o espectador por um passeio rápido e instigante por alguns pontos de Nova York.
Fim do julgamento: As relações perdidas
A partir do momento em que o julgamento e os desdobramentos legais são encerrados passamos a ter contato com as mudanças do dia a dia de cada um dos jovens, as relações das famílias e suas relações que foram construídas e encerradas tão rapidamente. Nesse ponto, apesar de termos a chance de ficar mais próximos do que acontece quando uma fase importante da vida de cada um deles é levada embora, quando famílias se despedaçam, a história perde um pouco do ritmo. Parece que na tentativa de mostrar detalhes mais profundos, alguns pontos se apresentam de forma desnecessária e o tempo narrativo se esgarça. Porém, vale a pena seguir.
A prisão nunca mais sai de você
Nas mais de duas horas que transcorrem até o final da minissérie, somos jogados dentro do vórtice que é estar preso, de famílias sem dinheiro, e de como o Estado - por meio de ferramentas de controle - leva a vida de um ex-presidiário para sempre. A possibilidade de reintegração social é quase impossível, algo que fica claro, quando um dos - agora - ex-presidiários comenta:
“Uma vez que eles te pegam, eles ficam com você”.
Mesmo com um pouco de dificuldade para contextualizar o tempo e a saída dos personagens (agora adultos) para as ruas, a abordagem segue para mostrar como - após cumprir com o destino que parece vir marcado à ferro na pele de quem nasce pobre e com a pele mais escura - é praticamente impossível conseguir escapar do trajeto predeterminado.
Toda essa jornada apresentando os problemas e os desdobramentos que uma condenação causa na cabeça e na vida de cada personagem, acaba servindo para destacar um ponto que quase sempre fica de fora das histórias: Como retomar a vida depois da prisão.
Essa abordagem faz com que seja possível ter a compreensão de quão difícil e complexo é esse recomeço e ganha ainda mais potência quando proporciona a chance de nos relacionarmos com a história de cada um dos personagens, com seus problemas e suas tentativas de retorno. Essas nuances são trabalhadas de forma interessante e com uma sutileza ímpar (que contrasta com o início da série) que humaniza ainda mais cada um dos momentos, tornando a conexão com esses - agora - adultos ainda mais forte.
Assim, o grande trunfo desse ponto da história fica por conta da possibilidade de compreender como algo que esses homens não controlam (cor, classe social e local de nascimento) influencia o desdobramento de suas vidas, em todos os momentos: Antes e depois da prisão.
O peso de um sistema que trata um jovem como um adulto
A parte final de Olhos que Condenam fecha o arco centrando a narrativa na trajetória de Korey Wise (Jharrel Jerome), que, por ter 16 anos na época do crime, é enviado para uma prisão comum. Sua trajetória dentro de toda a história é uma das mais chocantes, principalmente por causa do fator que o levou até a delegacia e então para a prisão.
Wise passa mais de onze anos cumprindo pena. Nesse processo perde o contato com a mãe e sofre com a impossibilidade de ter qualquer tipo de suporte financeiro da família, situação que não só retira sua liberdade, mas também inviabiliza - em uma fase complexa da vida - o contato com pessoas que ama e precisa.
É uma construção intensa que nos coloca no dia a dia de Wise, até o nosso limite e o dele. No fim, sua liberdade, assim como sua prisão, acontece por acaso da vida que - se não tivesse sido documentado - ninguém acreditaria.
Porém, mesmo com uma entrega brilhante de Jerome e a narrativa cuidadosa dosada, parece que DuVernay se perde em alguns pontos nesse momento de conclusão, possivelmente pela possibilidade de ter mais tempo para conduzir o público até o lugar para o qual gostaria.
Ver para gerar movimento
Com todo esse contexto em jogo, histórias, ilegalidades e vidas destruídas por causa de algo que ainda hoje interfere de forma brutal no dia a dia de milhões de jovens negros nos Estados Unidos e no mundo, Olhos que Condenam é uma produção que precisa ser vista, com calma, e sem prejulgamentos.
Um registro necessário, justamente por funcionar como uma possibilidade de aproximar o público da narrativa que foi imposta aos cinco jovens e causar, de alguma forma, o que obras artísticas precisam: Revolta, reflexão e movimento.