Quem vê o músico britânico John Lydon esbravejando em apoio a Donald Trump, em cenas recorrentes no noticiário americano dos últimos meses, deve ter dificuldade em ligá-lo à persona anárquica que dava voz aos Sex Pistols. O antigo Johnny Rotten, hoje um “cidadão de bem” dos Estados Unidos, só encontra espaço em manchetes atuais quando entoa discursos reacionários bem distantes do lema anti-imperialista que fincou a banda na história do punk rock: “Deus salve a Rainha, o regime fascista”. Mas, por mais brusca que possa parecer essa guinada, ela nunca foi um desafio à lógica — fato que o cineasta Danny Boyle expõe sem alarde dramático, mas com uma boa dose de firulas visuais, em Pistol.
A minissérie biográfica escrita por Craig Pearce (parceiro de roteiros de Baz Luhrmann em diversos filmes, incluindo o recente Elvis) rastreia a jornada do grupo de sua concepção enquanto projeto de vida do guitarrista Steve Jones até o inevitável e trágico fim, pontuado pela morte do baixista Sid Vicious em 1979. Reconstruindo o período entre 1975 e 1979 com todo o sexo, drogas e rock ’n’ roll que uma superprodução do FX pode comprar (a trilha sonora tem David Bowie, The Clash, além de diversos hits dos próprios Pistols, claro) ela apresenta sua versão não só dos laços entre os cinco músicos que participaram do grupo, mas também com figuras essenciais dos bastidores e da cena musical britânica.
Essa versão coloca Jones (Toby Wallace) como protagonista, um jovem criado por uma mãe solo e por diferentes padrastos abusivos que passa a enxergar na música o único caminho para um futuro melhor. Sem talento, mas com muita vontade e pouco medo da lei, ele usa pequenos delitos para conseguir os equipamentos necessários para os amigos Paul Cook (Jacob Slater) e Glen Matlock (Christian Lees) formarem uma banda. Com a chegada do errático e performático Lydon (Anson Boon), além da eventual troca de Matlock por Vicious (Louis Partridge), os Sex Pistols que conhecemos nascem, crescem e morrem. Mas o que Pistol faz muito bem logo de cara, e como poderia se esperar, é dar igual ou até maior importância na equação para o empresário Malcolm McLaren (Thomas Brodie-Sangster), a estilista Vivienne Westwood (Talulah Riley) e a loja de artigos sexuais Sex.
Foi graças ao casal e a seu estabelecimento, famosos no cenário underground londrino dos anos 1970, que Jones e companhia tiveram acesso não só à variedade de figurinos subversivos que os ajudou a influenciar tão diretamente a imagem do punk, como também aos discursos políticos e filosóficos que deram corpo às músicas revoltadas da banda. Em primeiro momento Pistol expõe os diferentes impactos que crises identitárias, políticas e econômicas da Inglaterra tiveram na juventude da época, caracterizando as diferentes respostas dadas ao tédio provocado pelo descaso: a revolta, a politização, a loucura e até a simples inanição. E, em um segundo, ressalta a dificuldade já antiga de fazer algo realmente revolucionário na arte, quando o capitalismo só permite aderência ampla àquilo que se torna produto.
Assim, à parte do couro rasgado, da sujeira, das cicatrizes de uso de drogas e porradaria, dos cabelos desgrenhados e pontudos, e de qualquer outra característica cosmética, os próprios Sex Pistols são enquadrados pela minissérie como o elemento menos punk da banda; um grupo de garotos com pouco estudo, pouca grana, pouco talento musical e estruturas familiares precárias (na maioria das vezes), que queria curtir sua versão do sucesso que via estampado nos Beatles e nos Rolling Stones — e que, para isso reproduziria qualquer discurso que conferisse mais impacto ao seu som. Claro que não é sem certa aprovação que eles abraçaram o anarquismo de McLaren e Westwood. Mas também não é sem cinismo que a dupla patrocinadora enxergou naqueles garotos desgrenhados o perfeito veículo para tornar comerciais as suas ideias para a Inglaterra.
Essa natureza dicotômica que se explicita até na raiz do nome Sex Pistols como derivação da loja que os emprestava forma e conteúdo é muito bem representada pela escolha de Boyle em saturar Pistol com filtros de imagem, transições afetadas e movimentos de câmera datados das produções de TV do início dos anos 1980. Há um cuidado tão meticuloso no tratamento não só das cenas gravadas para a produção, como também nas imagens de arquivos e no som, que a minissérie automaticamente se admite um produto muito bem pensado para os anseios comerciais de nostalgia da atualidade. Além disso, o texto de Pearce abre mão de sutilezas de uma forma claramente inspirada nos sucessos de Euphoria e Skins como dramas adolescentes inteligentes, mas acessíveis da nossa era. A exemplo de seu objeto de análise, Pistol também é um pop muito bem vestido de punk. Mas de forma totalmente consciente.
Para conseguir equilibrar o tom de homenagem crítica sem pender demais para o escrutínio ou para o romantismo cegos, Pistol se beneficia do elenco muito bem escalado não só no núcleo central de banda e patronos, como também nos papéis que o cercam. Maisie Williams (Game of Thrones) dá sequência à ruptura com a imagem infantilizada de Arya Stark injetando ousadia e intensidade em sua intepretação da modelo Pamela Rooke. Sydney Chandler é uma revelação como Chrissie Hynde antes de se tornar a frontwoman dos The Pretenders. E Emma Appleton injeta humanidade na trágica trajetória de Nancy Spungen. Com todos bem à vontade na pele das figuras reais que interpretam, recriações de histórias clássicas da banda e momentos ligados ao desenvolvimento de gêneros no rock, como o amadurecimento das vozes artísticas dos próprios pistols para além da influência de McLaren, envolvem e divertem com eficiência.
É essa progressão que eventualmente resulta em dissonâncias dentro do grupo, levando à ruptura do modelo de instrumentalização que colocava os Sex Pistols tão à mercê de McLaren e Westwood. Muito menos espetacularizada em Pistol do que em Sid e Nancy - O Amor Mata (1986), a jornada de Vicious e Spungen torna-se símbolo desse processo. Apresentado como um jovem ingênuo e impressionável, desprovido de grandes noções de limites, Vicious logo se torna o cordeiro sacrificial de um grupo que tirava proveito da imagem de loucura e rebeldia que professava em suas letras. Isso acontece porque, conforme os Sex Pistols se tornam uma banda mais convencional, maior se torna a necessidade de negar isso na forma de espetáculo — e é aí que entra o baixista, seus excessos muito bem midiatizados, e a pressão para levá-lo sempre ao limite.
É nessa chave trágica que Pistol explica como o John Lydon de hoje pode parecer tão dissociado do Johnny Rotten que cuspia em fãs enquanto bradava contra a Coroa Britânica e seus consortes: ele e seus colegas de banda eram jovens inconsequentes, tomados de assalto em uma turbulência cultural muito maior do que eles e imediatamente empenhados em um movimento de mudança muito além de suas pretensões e de sua compreensão. Na boca de Rotten, havia discurso, mas não havia elaboração. Essa maleabilidade na revolta que historicamente guia o rock não é novidade, tendo ficado mais evidente hoje, com o tanto de conservadores e reacionários que enxergam o gênero como algum tipo de bálsamo moral. Que Lydon eventualmente cresceu para ser um deles é só um lembrete da mesma coisa que Pearce e Boyle destacam com sua minissérie — de um jeito ou de outro, a pistola sempre esteve na mão do sistema.