Não demora muito, após apertar o play em Profecia do Inferno, para perceber que o criador Yeon Sang-ho tinha algumas questões muito pessoais a resolver quando decidiu contar essa história. O roteirista e diretor, mais conhecido pelo filme Invasão Zumbi, que se tornou um hit internacional para o cinema sul-coreano, aportou na Netflix com uma série que se posiciona como meditação retoricamente afiada, mas também sentida e muito humana, sobre a religião e a ação multifacetada dela na sociedade.
Profecia do Inferno retrata o que acontece quando pessoas ao redor do mundo começam a receber visitas de criaturas estranhas que anunciam o dia e a hora de suas mortes, e ainda revelam que elas estão condenadas à danação eterna. Quando o prazo anunciado chega, três monstros aterrorizantes aparecem para (na maior parte das vezes, violentamente) cumprir a sentença, deixando só restos carbonizados do indivíduo em questão para trás.
Sem entregar spoilers demais, as consequências desses fenômenos sobrenaturais são abordadas na série através de duas histórias diferentes, uma contada nos três primeiros capítulos da temporada, e outra nos três finais. A conexão se dá por meio de três personagens, os únicos a aparecerem em ambos os “segmentos” - e, é claro, do desenvolvimento conceitual do universo maior que os abriga. Mesmo assim, essa escolha curiosa de estrutura narrativa deixa em suspenso arcos inteiros de personagem, exigindo um exercício de paciência que não é inteiramente recompensado no final.
A boa notícia é que, mesmo em seus momentos mais frustrantes, Profecia do Inferno nunca deixa de ser um pedaço tremendamente inteligente de televisão. O criador Yeon não pega leve em suas críticas à religião organizada, expondo com requintes de sátira como igrejas multimilionárias funcionam, por trás das cortinas, como burocracias sufocantes disfarçadas em trajes de alta filosofia. Mas seria fácil demais parar por aí, então ele vai mais fundo.
Profecia do Inferno reflete sobre como a vigilância moral pregada pela religião fere de forma essencial a privacidade e a intimidade daqueles que, voluntariamente ou não, se submetem a ela; e sobre como a busca fútil da religião por significado nas tragédias do mundo rouba daqueles atingidos por elas o direito de defini-las em seus próprios termos, integrá-las às suas próprias histórias, e aprender a viver com elas. São desses últimos conceitos que a série tira seus momentos mais emocionalmente impactantes, mobilizando no espectador uma angústia e revolta enraizadas, fundamentais, que nem toda ficção consegue acessar.
Daí também a potência da atuação de Yoo Ah-in, talvez o rosto mais familiar do elenco para o público ocidental. Conhecido por viver o protagonista do filme Em Chamas, em uma atuação silenciosa de introspecção e ressentimento, o ator reverte a própria imagem ao interpretar o líder do movimento religioso que ganha popularidade e poder após o início dos eventos sobrenaturais da trama. Aqui, ele pinta o retrato fascinante de um homem inescrupuloso e carismático, mas essencialmente movido por medo, e cujos atos criam um mundo governado pelo mesmo sentimento.
Com um finale que deixa possibilidades plenamente abertas para uma segunda temporada, Profecia do Inferno ainda pode se provar uma narrativa mais satisfatória do que demonstrou ser neste primeiro ano. Ela certamente tem a inteligência para isso.