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Séries e TV

Crítica

Reacher: Elenco carismático garante que série seja passatempo divertido e brutal

Adaptação televisiva dos livros de Lee Child oferece mais fidelidade, mas a certo custo

04.02.2022, às 16H24.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H47

Jack Reacher é um fenômeno literário que cruzou oceanos e atravessou décadas com sua versão modernizada do mito do cavaleiro errante. Criado pelo britânico Lee Child por motivos puramente financeiros — desempregado ao final da década de 1990, ele abraçou a tendência de mercado que apontava o sucesso de livros de mistério, criando a franquia —, o personagem-título é a encarnação de diversos fetiches da masculinidade moderna. Um veterano militar que é ao mesmo tempo uma montanha de músculos e um cérebro ímpar, ele vive livre das amarras do capitalismo (dinheiro nunca parecer ser um problema), e segue mergulhado em uma eterna viagem pelos Estados Unidos, na qual coleciona amantes, desvenda conspirações, mata muita gente e inspira outros com um heroísmo tão implacável quanto descompromissado.

O personagem transpôs os livros em dois filmes estrelados por Tom Cruise, com resultados distintos. Em Jack Reacher: O Último Tiro (2012), o diretor Christopher McQuarrie usou seu talento na direção de cenas objetivas (e épicas) de ação para distrair fãs fervorosos das muitas liberdades criativas empregadas na adaptação. Já em Jack Reacher: Sem Retorno (2016), a entrada pouco inspirada do diretor Edward Zick (O Último Samurai) e uma trama altamente genérica acabaram sacrificando a boa vontade garantida anteriormente. Meia década depois, uma nova chance se apresenta na TV: em Reacher, série do Amazon Prime Video, o veterano militar ressurge mais brutal do que nunca, em seu retrato mais reverente aos livros até hoje, sob o comando saudosista do roteirista e produtor Nick Santora (Scorpion).

Fã confesso de Child, que também produz a série de TV, Santora usa seu poder como showrunner para fazer de Reacher uma grande homenagem à obra do autor. Para isso, decidiu começar do começo, adaptando nessa temporada inicial o romance de estreia do personagem, Dinheiro Sujo (ou Killing Floor, no original). A história coloca Jack Reacher, por motivos banais, na cidade americana fictícia de Margrave, Georgia. Lá, ele acaba envolvido em uma espiral criminosa com implicações inesperadamente pessoais.

Seguindo essa premissa quase que literalmente (uma personagem de livros posteriores eventualmente dá as caras, em participação divertida), a série aposta mais no fan service do que na novidade, especialmente na escalação de Alan Ritchson (Titãs) como o personagem-título. Com Jack Reacher descrito nas páginas como um homem loiro de 1,95m, o novo intérprete está muito mais próximo fisicamente do personagem, com 1,88m, que Cruise, seus cabelos castanhos e (dizem por aí) seu menos que 1,70m de altura. Enquadrado quase que sempre de baixo para cima, e dividindo as cenas com atores muito menores que ele, Ritchson surge gigantesco na tela, uma montanha de músculos que assusta ainda mais quando abre a boca após minutos de silêncio e despeja quatro páginas de roteiro em um rompante de exposição investigativa.

Se o ator não é o téspio mais técnico, sua experiência em produções de gênero como Smallville, As Tartarugas Ninja e, claro, Titãs, garante o domínio necessário de auto-ironia e canastrice para que a flagrante pedância e aparente ausência de imperfeições de Reacher não se tornem motivo de antipatia. Mais do que tirar de letra cenas frenéticas de porradaria coordenadas pelo experiente Buster Reeves, Ritchson prova ser uma escolha certeira para o papel por não levá-lo a sério demais, balanceando qualquer sinal de ridículo com uma leveza que o desmonta. Quando Child criou Reacher, ele fez questão de ir contra a tendência dramática dos anos 1990 e construir um personagem que enxerga o mundo e a si mesmo muito claramente em preto e branco, com pouquíssimos tons de cinza. Sem vícios debilitantes, traumas do passado mal resolvidos e maiores defeitos de caráter (à parte de um gosto por homicídio que nunca é problematizado), ele é um cara que se preocupa apenas e sempre com o aqui e o agora. Seguro, o ator entende e habita isso.

É uma pena, porém, que essa sutileza na transferência de elementos escritos para a tela não seja partilhada pelo roteiro da série — que acaba materializando uma narrativa arrastada em alguns episódios graças à necessidade constante de atualizar o público, em diálogos truncados, sobre o andar das investigações. Nas páginas, reviravoltas constantes ancoradas em nomes, cifras, organizações e torrentes de outras informações inesperadas, podem funcionar como ferramenta para manter o leitor engajado. Na TV, entretanto, o excesso de fidelidade de Santora com a trama escrita por Child acaba transformando a exposição em distrações chatas posicionadas entre cenas incríveis de ação.

Esse defeito fica ainda mais evidente conforme brilha o maior mérito da série: seu elenco. Trabalhando lado a lado com Reacher, personagens como o obstinado investigador Oscar Finlay (Malcolm Goodwin) e a tempestuosa policial Roscoe Conklin (Willa Fitzgerald) não demoram a revelar facetas que os tornam mais complexos e interessantes do que o próprio protagonista. Em interações com ele, a química entre os atores brilha e é isso que salva os mais sonolentos momentos de exposição, obrigatórios em um roteiro que raramente cruza a linha do razoável. Em participações menores, veteranos da telinha americana como Bruce McGill, Kristin Kreuk e Harvey Guillén também entregam trabalhos competentes, mas isso acaba por ser um prazer agridoce; se a série focasse mais no desenvolvimento dos personagens e menos na desnecessária complicação de um mistério já suficiente, a jornada como um todo seria mais coesa e divertida.

No final das contas, porém, Reacher entrega o entretenimento porradeiro que os fãs do personagem e do gênero vão curtir sem grandes receios. Para quem espera algo a mais, entretanto, a experiência pode ser frustrante: em suas mãos, Santora tem todos os elementos necessários para não só traduzir o brilhantismo comercial da escrita de Child para a telinha, como transcendê-lo em um conteúdo que abarque também discussões sociais interessantes. De uma certa forma, Jack Reacher é um símbolo de ideais conservadores românticos à identidade cultural americana, e o potencial de confrontá-lo com personagens e dramas que incorporam ideais progressistas é ilimitado. Infelizmente, a série do Prime Video ensaia um mergulho nessa profundidade, mas nunca o executa plenamente. Quem sabe na próxima temporada? Ao menos, vale a pena esperar.

Nota do Crítico
Bom