Nossas impurezas não são fraquezas; na realidade, são justamente elas que nos fazem mais fortes. Esse é o ponto de partida de Samurai de Olhos Azuis, animação franco-americana que estreou na Netflix em novembro e tornou-se uma das gratas surpresas do streaming neste final de 2023. Só que a primeira temporada da produção (que tem oito episódios), consegue ser ainda mais profunda.
Para começar, apesar da temática e do pano de fundo orientais, este não é um anime. Trata-se de um "animesque", um desenho animado ocidental que é influenciado pela cultura nipônica. No caso, a criação foi da dupla Amber Noizumi e Michael Green – este último roteirista de Logan e responsável pelo texto do futuro Blade. Os dois também são produtores executivos, ao lado de Erwin Stoff (de Matrix e Constantine). A supervisão de direção é de Jane Wu.
Mal comparando, é como se os animes fossem como o champagne, um produto de origem controlada. Já Samurai de Olhos Azuis é como o espumante: um produto parecido, mas de outro lugar e com suas particularidades.
E que espumante Samurai de Olhos Azuis é: a animação mistura o “sabor” do chanbara (o cinema de samurai, dos clássicos filmes do diretor japonês Akira Kurosawa) com os longas-metragens de spaghetti western estrelados por Clint Eastwood, além de trazer referências a animes como Samurai X e ao bunraku, que é o tradicional teatro de fantoches japonês.
Um samurai com nome
Esta história é sobre Mizu, grande espadachim de olhos azuis que busca vingança contra os homens que amaldiçoaram a sua vida. Até aí, nada que você não tenha visto antes.
Acontece que o desenho animado se passa em meados do século 17, quando o xogum – o ditador militar do Japão, que mandava em tudo enquanto o imperador tinha poder apenas cerimonial – proibiu a entrada e a permanência de cidadãos estrangeiros no país, na política isolacionista conhecida como sakoku e que durou mais de 260 anos.
Pois este é o toque único da produção: Mizu, ao ter a mistura de sangue japonês com europeu, é amaldiçoado pela sociedade, que o considera menos que humano.
Eram quatro os homens brancos que viviam no país ilegalmente no momento do nascimento do samurai, que não sabe quem realmente é o seu pai. Não tem problema: Mizu irá atrás de todos para se vingar por sua existência, trazendo convenientemente uma temporada para cada caçada.
Com esse contexto, Samurai de Olhos Azuis começa a sua trajetória ressoando entre todos aqueles que se sentiram, ou ainda se sentem, rejeitados pela sociedade por suas diferenças.
Não estamos falando apenas de questões étnicas. É aqui que entra um belo paralelo com as espadas: é preciso tirar as impurezas do aço durante o processo de fabricação, mas a busca pela pureza total apenas criará uma liga fraca e quebradiça. São nossas peculiaridades e particularidades que nos dão força e resistência.
Isso por si só já serviria para botar o roteiro de pé, mas os oito episódios desta primeira temporada vão além. De surpresa, Samurai de Olhos Azuis evolui rapidamente para um comentário social, apontando a opressão sofrida pelas mulheres. No contexto do Japão do Período Edo, as jovens só têm dois destinos para suas vidas: se casarem ou se tornarem prostitutas. Na prática, muda apenas o tipo de homem ao qual são vendidas pelo pai.
Nesse sentido, o animesque traz suas principais protagonistas femininas lutando contra as estruturas sociais com as armas que encontram, batalhando pelo controle de seus destinos e pela chance de escolher o seu próprio caminho. Então vem o primeiro grande plot twist da série, que não é um spoiler por estar no material de divulgação: Mizu é, na realidade, uma mulher que se passa por um homem para sobreviver.
Animação e realismo
Samurai de Olhos Azuis é pintado com uma animação bastante bela e moderna, feita em computação gráfica com um toque do estilo tradicional. Já as cenas de luta foram desenhadas a partir de coreografias em live-action com espadachins reais. O resultado na tela lembra os desenhos animados de cinema dos anos 1990, quando a técnica da rotoscopia e os retoques em CGI fizeram com que longas como Anastasia e A Bela e a Fera tivessem aquela movimentação quase real.
Tudo isso é fechado pelo ótimo trabalho de voz original de atores famosos como George Takei (o Sulu da série original de Star Trek), Ming-Na Wen (de Agents of SHIELD e Mulan), Kenneth Branagh (Oppenheimer, Dunkirk) e Cary-Hiroyuki Tagawa (Mortal Kombat, o de 1995). Mas quem comanda a ação mesmo é Maya Erskine, que dá vida a Mizu, fechando o quarteto de protagonistas ao lado de Masi Oka (e seu encantador Ringo), Darren Barnet e Brenda Song.
Nem tudo é perfeito, é claro. Percebe-se que, em alguns momentos, há a tentativa de alongar o enredo, fazendo-o preencher os oito episódios de cerca de 45 minutos. Claramente era possível cortar uma gordura aqui e ali, mas, ao mesmo tempo, essas “esticadas” são bem utilizadas, trazendo surpresas que, por mais que pareçam heterodoxas em um primeiro momento, funcionam bem para o cenário que a animação quer construir.
A equipe de produção (composta por pessoas de diversas origens) também pode incomodar os mais puristas. Mas, mais uma vez, este não é um anime, nem tem como principal alvo o mercado japonês. Trata-se de um produto global.
Talvez aí esteja o real motivo de Samurai de Olhos Azuis ser bem-sucedido, em um ponto que nos leva de volta ao começo desta crítica: é a mistura de ligas que faz o metal ser mais forte.