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Crítica

Santo Maldito flerta com o céu e o inferno, mas termina no limbo

Felipe Camargo e Augusto Madeira estrelam produção original do Star que tem uma grande ideia nas mãos, mesmo que nem sempre saiba o que fazer com ela

13.02.2023, às 13H04.

Na engrenagem da televisão, a maioria das máquinas vibra numa mesma sintonia. Ideias se reciclam e ressurgem em versões diferentes da mesma coisa, uma vez que arte é, por essência, um ciclo de inspirações. Eventualmente, em pontos específicos da história, presenciamos o surgimento da originalidade. Ela se torna mais rara a partir do momento em que as expressões artísticas se expandem; mas, ela existe (considerando que os níveis de exigência também foram devidamente reajustados). 

Não estamos dizendo aqui que Santo Maldito seja original (não dá para ignorar a clara inspiração em Corpo Fechado, de M. Night Shyamalan). Mas ela é uma série que apresenta um esforço notório para dizer algo diferente. Existe em seu argumento um sopro de autenticidade que se impõe desde o momento em que ela se apresenta, ainda que no seu desenvolvimento ela não faça as escolhas mais interessantes. Como tem acontecido muito na produção nacional em plataformas de streaming, há uma extrema atenção aos aspectos estéticos das obras. Mas há também uma dificuldade em escapar da reprodução superficial de códigos norte-americanos enraizados. 

Criada por Rubens Marinelli e Ricardo Tiezzi, Santo Maldito já começou tendo suas bases firmadas no que a gente reconhece bem. A vida do professor Reinaldo (Felipe Camargo) é difícil como a de qualquer professor desse país. Ele luta para dar conta de casa, da filha, das próprias responsabilidades e sonhos. Um dia sua mulher leva um tiro num assalto e entra em estado vegetativo. Reinaldo toma a decisão de desligar os aparelhos e um enfermeiro que passa por ali se atenta para o monólogo do professor antes do ocorrido. Esse enfermeiro decide, então, filmar o momento. Reinaldo puxa os plugues e imediatamente a mulher acorda, milagrosamente. O vídeo, enfim, se torna “prova” de alguma coisa que está aberta a perigosas interpretações. 

É aí que entra Samuel (Augusto Madeira), pastor de uma pequena igreja evangélica frequentada pelo enfermeiro que presenciou o “milagre”. O pastor entende que aquilo é uma espécie de sinal e procura Reinaldo com uma proposta: se Reinaldo topar ministrar cultos na igreja de Samuel, o dinheiro arrecadado pela igreja será usado para pagar as despesas hospitalares de sua esposa. Descobrimos finalmente o conflito oferecido pela série: por dinheiro, Reinaldo – que é ateu – precisará falar de fé; enquanto Samuel, por razões que lhe competem, comprará o “milagre” para seus fiéis. 

Santos e Malditos

Durante os primeiros três episódios dos oito que formam a temporada, o potencial dessa ideia é realmente promissor. Imagine um homem que construiu sua vida desafiando a existência do divino, precisando reconhecê-lo para ganhar dinheiro? É uma situação que esbarra em uma infinidade de problematizações filosóficas e sociais. É o reconhecimento da fé, é a verdade da ciência, é o oportunismo religioso, é a capitalização de expectativas... O enredo de Santo Maldito é de uma complexidade como há muito tempo não se via na nossa televisão. Mas, será que seu desenvolvimento esteve à altura de sua grandiosidade? Infelizmente, a resposta é não. 

Diferente da maioria dos argumentos que preenchem as narrativas do mercado, a força da série de Rubens e Ricardo não está nos acontecimentos e sim no discurso. Algumas ideias são assim, não dependem de ações e sim de texto. Corpo Fechado, de Shyamalan, trabalhava o invisível com ceticismo e se aprofundava em internalização. O que aconteceu na abordagem dos criadores de Santo Maldito é o que já aconteceu em todos os outros casos mencionados nesse texto: eles se deixaram seduzir pelo esvaziamento da palavra para priorização da “surpresa”. Logo que chega em sua metade, a temporada de Santo Maldito começa o rocambole para surpreender com conexões entre os personagens e revelações esdrúxulas. 

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É uma alegria ver Felipe Camargo e Augusto Madeira trabalhando em plena compreensão do que move seus personagens, mas é uma pena vê-los aprisionados por um roteiro que desvia a narrativa para a construção de ganchos superficiais. Os autores desperdiçam a bela oportunidade de filosofar para dar vazão à obviedade do flerte com o sobrenatural, abraçando clichês cansados, como o “passado traumático” do protagonista (um recurso que rege 99% das dramaturgias contemporâneas). Eles estão mais preocupados com justificar tudo ao invés de colocar esses personagens para viver. 

O barato de Reinaldo ser um ateu que prega a palavra de Deus está em não ter mesmo nenhuma religiosidade e nenhum “poder”. Mas, Rubens e Ricardo não conseguem resistir e, aos poucos, a grande ideia que tirava Santo Maldito do lugar comum se esvazia. A ótima problematização em torno do dinheiro levantado pela igreja se esvazia; as cenas em que Reinaldo poderia subverter as impressões dos fiéis são desperdiçadas com citações sem desenvolvimento; os conflitos de Reinaldo com o estudo da fé não existem... É uma pena.

Mesmo assim, Santo Maldito está bem acima da média do que geralmente vemos no catálogo nacional do streaming. Tudo isso pode mudar para melhor numa vindoura segunda temporada, que não se seduza pela grandiloquência sobrenatural e entregue o texto forte que essa ideia precisa para continuar sendo grande. Por hora, nem céu nem inferno... A série segue no limbo. 

Nota do Crítico
Bom