A Netflix começou sua saga de produções originais há algum tempo e cumpriu a promessa de lançar dezenas de séries por ano com afinco. O objetivo é claro: chegar a um ponto em que a plataforma esteja tomada de produções originais, tornando o catálogo terceirizado obsoleto. Para isso, o nível de qualidade da "prata da casa" teria que ser indiscutível, o que não acontece com todos os gêneros. As séries adolescentes são um exemplo. 13 Reasons Why caiu de qualidade na segunda temporada, Insatiable foi um tiro no pé e Everything Sucks teve uma vida muito mais curta do que o esperado. Ainda há um ou outro acerto, mas geralmente a plataforma tem se equivocado na emissão das mensagens.
Na lista das boas séries adolescentes do mercado, as britânicas são quase uma garantia de eficiência. Skins, My Mad Fat Diary e até a transgressora e precocemente encerrada In the Flesh, são alguns dos títulos que reforçam como a juventude é tratada com especial atenção pela dramaturgia inglesa. Em muitos casos ela até mesmo pode ser considerada um drama antes de ser uma "série teen". Isso se dá por conta de uma fórmula sensata que inclui os assuntos básicos recorrentes desse tipo de produção (como gravidez, gênero, orientação sexual, relações parentais, corações partidos e etc), mas conduzindo-os com uma propriedade que equilibra bem o drama e o otimismo. Algo que Ryan Murphy, por exemplo, sabia fazer muito bem em Glee. Por mais que a vida seja sombria, ela não tem uma nota só.
Sex Education, criada por Laurie Nunn, chegou ao serviço de streaming no dia 11 de Janeiro. Não se pode saber ainda se será um sucesso, mas uma olhada nos oito episódios dessa primeira temporada já deixa as melhores impressões possíveis. Seu título é um pouco autoexplicativo: O jovem Otis (Asa Butterfield) não é um adolescente típico. Sua mãe (vivida por ninguém menos que Gillian Anderson) é uma terapeuta sexual e isso deixou mais marcas no menino do que ela mesma imagina. Otis carrega seus próprios traumas, mas também carrega um talento: depois de ajudar sem querer o valentão bem-dotado da escola, a excluída Maeve (Emma Mackey) o convence a dar "consultas" para os colegas em troca de grana, o que logo se revela um bom e arriscado negócio.
Educativos
Qualquer pessoa que já assistiu pelo menos duas séries adolescentes sabe tudo que vai encontrar nela. Com uma métrica tão definitiva, o diferencial está no texto. Tramas clássicas do estilo podem parecer meras cópias se não forem tratadas com inteligência. Essa é a estratégia de Sex Education, que passeia por vários assuntos que já estávamos acostumados a ver no gênero, mas o faz com propriedade textual, seriedade e o mais importante: com a catarse como alvo. Coisas vão dar errado, é claro, mas não há necessidade de ter uma vida miserável por 100% do tempo. Assim, enquanto o roteiro coloca os personagens em apuros, as resoluções e epifanias positivistas entregam o transe catártico ao espectador.
O outro diferencial está no pano de fundo da história: o sexo. O sexo é parte primordial de quase tudo que constitui a rotina de um jovem contemporâneo e suas angústias e anseios nessa fase da vida são geralmente conectadas a ele de alguma forma. A concepção da série é muito esperta justamente porque quando Otis começa a fazer seus atendimentos, os episódios passam a ilustrar questões sexuais que vão desde o óbvio (não consigo ter um orgasmo) até o completamente inusitado (não consigo enfiar nada na vagina). Repetindo os jargões especializados da mãe, o protagonista e seus "pacientes" dialogam a respeito de questões e problemas sexuais que muitos jovens hoje em dia não conseguem entender ou admitir que tem. O melhor é que tudo isso é feito com muito humor, ousadia e provocação.
Amigável
É notório que - apesar de acessar as tramas recorrentes do gênero - Sex Education busca sua identidade na forma com que constrói suas relações. As adolescentes que compõem o time de personagens femininas são fortes, decididas e questionadoras. Os roteiros não situam isso apenas no lado das "mocinhas", mas distribuem essa nova abordagem entre todas, nos presenteando até mesmo com Lily (Tanya Reinolds), uma escritora de contos eróticos bizarros que só quer simplesmente perder a virgindade, sem laços emocionais, sem complicações e o mais importante: sem culpa. Não é uma questão de banalização, muito pelo contrário. O valor sentimental das interlocuções só não é a estrela do show, o que livra o sexo pelo sexo, a liberdade de alternativas, do julgamento e da vulgarização.
Mas, sem dúvida, o maior ganho da série é a amizade incrível entre Otis e Eric (Ncuti Gatwa). Personagens gays tendem a ser monotemáticos nesse tipo de série e Sex Education não foge das abordagens inevitáveis. Eric, ainda bem, sofre mais influências da já citada Glee, que por si só tomava decisões transgressoras a respeito. Sua relação afetuosa com o pai religioso e a resolução das tensões com o maior valentão da escola se assemelham bastante à produção musical da Fox. Porém, ainda que Glee tenha ensaiado isso, nenhuma outra série totalmente adolescente tinha investido tão pesado e tão corretamente na amizade entre um rapaz heterossexual e um rapaz homossexual. É como se víssemos ganhar vida as melhores páginas dos romances de David Levithan, onde a presença de personagens gays é tratada com naturalidade extrema. Não há uma cena sequer em que Otis questione ser amigo de um rapaz gay, se afete por isso ou hesite diante do compartilhamento da simbologia gay com o amigo. Para ser próximo de Otis, a série não transforma Eric num modelo heteronormativo e só isso já é absolutamente louvável.
Os episódios são muito bem conduzidos, mas são longos. Um modelo de 30 minutos com 12 capítulos talvez desse um ritmo melhor ao produto final. As atuações são todas muito corretas e Gillian Anderson (o nome mais conhecido do elenco), segue deixando Scully para trás, o que é mais que esperado depois do que Chris Carter fez com no revival de Arquivo X. Cercada de obscuridade e ao mesmo tempo de doçura, Sex Education vai a todos os lugares onde deveria ir, explora todas as regiões certas, se conduz como num coito de pleno aproveitamento: ótimas e suaves preliminares, percurso nem lento nem super ágil e um clímax certeiro, daqueles que nos fazem pensar e sorver a experiência, só para acordar no dia seguinte e perceber que queremos mais.