Shrinking/Apple TV+/Reprodução

Séries e TV

Crítica

Sem negar a dor, Shrinking envelopa o caos da vida com senso de humor acolhedor

Sucessora espiritual de Ted Lasso, comédia do Apple TV+ transforma premissa questionável em alegoria para atestar que todos somos desajustados

20.04.2023, às 09H33.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H12

“Ninguém passa pela vida ileso”, diz o experiente terapeuta Paul (Harrison Ford) logo em um dos primeiros episódios de Shrinking. Sua intenção com essas palavras é explicar para Alice (Lukita Maxwell), sua jovem “paciente” em luto, o porquê da sua sensação de despertencimento e solidão. Para dar conta da universalidade desta aflição, ele aponta para um exemplo que está ali, diante dela: um homem bem-sucedido, respeitado e adorado por seus pares, que se vê perdendo autonomia por causa do diagnóstico de Parkinson. "Então, te resta uma escolha”, ele continua. “Você vai deixar sua dor te afogar ou você vai enfrentá-la e se reerguer?” E, por mais duro que seja para a adolescente, o choque de realidade se torna acolhedor na coloquialidade de uma conversa no parque. Para ela e para o espectador.

A cena, embora sequer tenha a presença do protagonista da série, encapsula bem o que é a comédia da Apple TV+ — não só do ponto de vista da premissa, mas especialmente do seu tom particular. Partindo da história de Jimmy (Jason Segel), um psicólogo em crise que, nas suas tentativas tortas de se reerguer, decide alargar os limites éticos da profissão e ser brutalmente honesto com seus clientes, Shrinking abre as cortinas e revela a humanidade por trás da figura “ajustada” do terapeuta. É nesse contraponto do imaginário coletivo e do hall de vacilos dos seus personagens que surgem não só seu humor, como também seu efeito otimista. Porque, em última instância, cada vez que alguém mete os pés pelas mãos sem querer, Shrinking desmistifica também o monstro da terapia e sugere, como quem não quer nada, que o espectador se permita ao menos tentar.

Nesse sentido, é bastante imediato compará-la a Ted Lasso: ambas as produções parecem saídas do mesmo molde, e não é à toa. Dois dos três criadores de Shrinking estão diretamente envolvidos com sua antecessora — Bill Lawrence como criador e produtor-executivo, e Brett Goldstein como roteirista, co-produtor e ator. Contudo, essa repetição nunca se traduz em artificialidade. No fundo, a comédia estrelada por Segel busca apenas o mesmo efeito, isto é, ser uma história feel good, mas não necessariamente seguindo a mesma fórmula. Sim, Jimmy e Ted (Jason Sudeikis) são homens de meia-idade em crise, atormentados por dilemas paternos — aliás, eles e todo um extenso catálogo de protagonistas da cultura pop. Mas, de cara, os dois têm uma diferença crucial: Jimmy não é alçado ao posto de “bom moço”. Todos os seus traumas se traduzem em equívocos e confusões, por mais bem intencionado — e treinado — que ele seja.

O personagem é um prato cheio para Segel, que tem a chance de explorar o que o tornou tão querido pelos fãs em How I Met Your Mother ou em filmes como Eu Te Amo, Cara e Ressaca do Amor. É inegável: as caretas e a comédia física, divertidas pelo exagero, redimem Jimmy de todos os seus fracassos. No entanto, a verdade é que ele não seria um personagem tão cativante se não fossem os coadjuvantes que o circundam. Afinal, é no atrito e na subsequente conciliação que está a fagulha de Shrinking.

A relação com o personagem de Harrison Ford é, talvez, o destaque mais imediato. Em um dos seus primeiros papéis na TV (Shrinking foi exibida simultaneamente a 1923, também estrelada por Ford), o ator veterano aproveita a temporada para exibir seu timing cômico preciso e seu humor característico, conforme constrói com Segel uma relação quase paternal de mentor e mentorado. E, como é sintomático a toda a série e, convenhamos, ao próprio Ford, há uma doçura curiosa no jeito ranzinza de Paul. Por isso, quando o roteiro deixa vazar um pouco mais da sua vulnerabilidade — algo que não é tão raro quanto parece —, o espectador tende a sentir a mesma recompensa que Jimmy.

Felizmente, ele não é o único personagem charmoso por suas antíteses, nem capaz de balançar a vida do protagonista. Há de se exaltar, sobretudo, a presença solar de Jessica Williams e sua também terapeuta Gabby. Inserida num cenário dominado por homens brancos, é ela quem traz um respiro de novidade, seja na sua própria ironia, seja nos seus dilemas particulares. Isso porque, além de ser uma mulher negra, Gabby vive outro luto, isto é, o fim de um relacionamento, e, portanto, sedimenta a ideia de que a perda, seja ela qual for, é um processo constante na vida.

Mas é preciso reconhecer que, nesse exercício de desmistificação da terapia — interessante do ponto de vista da ficção, mas no mínimo controverso se aplicado na vida real —, Shrinking romantiza em alguma medida as relações humanas. Todos, mesmo os personagens com menos vocabulário emocional, sabem identificar e descrever seus sentimentos. Logo, por mais que o processo possa demorar um ou dois episódios, geralmente o arrependimento e o pedido de desculpas vêm, algo que basta estar vivo para saber que não é realista.

Por isso, estrategicamente, Shrinking lembra que os métodos de Jimmy estão longe de ideais, como quem tenta fazer um mea culpa por sua premissa e aplicar um lampejo de pragmatismo — uma tentativa que, acredite, é bem-sucedida, porque ao longo dos 10 episódios fica evidente o cuidado que a série tem com o retrato de pacientes com TOC ou estresse pós-traumático.

Esse filtro esperançoso está para ser posto verdadeiramente à prova com o final chocante da temporada. Porém, por ora, a falta de cinismo e a constante lembrança do lado lúdico da vida adulta dão conta de tornar uma série encantadora. Afinal, não é preciso que ela ofereça uma solução. Enquanto obra de ficção, basta que, com senso de responsabilidade, faça das contradições humanas algo do qual valha a pena rir.

Nota do Crítico
Ótimo