Dentre várias produções brasileiras vinculadas na Netflix, Sintonia talvez seja uma das mais seguras e bem organizadas. Diferente das ideias mirabolantes que resultaram em produções como 3% e Spectros, aqui a trama é simples e acessível para praticamente todo tipo de público. Era de se esperar que numa série chamada Sintonia, os elementos estivessem todos corretamente alinhados, mesmo que esse alinhamento, muitas vezes, sofra com o processo de identificação. Mesmo depois de três anos, a produção ainda se debate para se livrar dos códigos de um folhetim. Nessa terceira temporada, contudo, ela chegou bem perto disso.
O primeiro grande acerto veio quando foi tomada a decisão de contar a história de Nando (Christian Malheiros), Doni (Jottapê) e Rita (Bruna Mascarenhas) se aproximando o máximo possível da realidade que serviu de inspiração para o texto de Guilherme Quintella, Duda Almeida, Thays Berbe e Pedro Furtado. Tudo em Sintonia é muito calculado para exibir na tela a linguagem da periferia paulista, ainda que isso passe por estilismos característicos da ficção. E não é só uma questão de linguagem... O trio de protagonistas estabelece uma trindade para o desenvolvimento narrativo: funk, crime e fé. Essas três bases são, também, as bases que sustentam a cultura dessas regiões.
Na primeira e na segunda temporada da série, ela precisou levar os protagonistas até o topo. Isso é bem característico de histórias sobre a ascensão do oprimido. Para que o “herói” se fortaleça e vença a derradeira batalha, antes ele precisa perder tudo que conseguiu conquistar quando chegou lá no ponto mais alto. Doni tinha que ser um MC de muito sucesso, assim como Nando precisava ser o mais poderoso do tráfico e Rita precisava crescer dentro da igreja. Os roteiros se preocuparam sempre em manter a amizade deles protegida de expectativas românticas (um dos outros maiores acertos) e próxima dos maiores degraus nos meios em que estava inserida. Assim, o tombo seria mais dolorido.
Então, quando o terceiro ano começa, já é possível rastrear as histórias que estão sendo preparadas. Nando virou o chefe do movimento ao mesmo tempo em que sente cada vez mais necessidade de sair dele. Doni fez tanto sucesso que a trama do poder subindo à cabeça era inevitável. As coisas foram um pouquinho mais surpreendentes com Rita, que enveredou para a política apenas para perceber que não está disposta a misturar religião com palanque. É justamente essa previsibilidade que atrapalha o ritmo dos episódios, mais morosos, ainda que eles tenham demonstrado amadurecimento da dramaturgia e das escolhas estéticas.
Sintonizados
Foi uma terceira temporada difícil para Doni, particularmente. Depois de levarem o personagem para o topo das paradas, era certo que lhe dariam uma rasteira. Ela veio como de costume, com o rapaz tomando decisões ruins na vida pessoal, deixando o poder, o álcool e as drogas pautarem o ritmo de seu sucesso. A traição que lhe rendeu o fundo do poço acabou sendo resolvida no tempo de uma canção e prejudicou o desenvolvimento do personagem. Considerando que ele já fez sucesso rápido demais, acabou sendo coerente que o fracasso tenha durado 5 minutos. Foi um pouco negligente, precisamos admitir.
Do outro lado, Rita foi conduzida pela temporada com muito mais cuidado. Sintonia sempre foi uma série que tentou respeitar a vida e a fé dos evangélicos, nunca apelando para saídas fáceis como desvio de dinheiro e abusos sexuais, ferramentas clássicas na hora de colocar em dúvida essa comunidade. A fé de Rita fez bem a ela, amadureceu sua trajetória e estará na gênese da personagem para sempre. Os roteiristas foram inteligentes quando fizeram-na perceber, bem aos poucos, que sua vontade era ser útil para muito mais que a comunidade evangélica. Assim, a crítica ao perigoso casamento entre política e religião foi feita, sem necessariamente ferir a integridade da instituição.
Já com Nando, tudo permanece sendo delicado... Descendente direto de Tony Soprano, ele é um chefão do crime que precisa encontrar tempo para ser amigo, pai, marido, tudo com zelo e atenção; e ainda sendo durão no processo. Os passos que ele dá na temporada vão levando a organização criminosa para patamares maiores, enquanto, em casa, ele precisa tentar priorizar o futuro da família. Nando é leal com todos, um marido e um pai amoroso, alinhado em suas camisetas polo, um cara de quem é difícil não gostar... E aí reside o problema. Ainda assim, ele rouba, intimida, ameaça, mata até. Muitas vezes é como se o roteiro esquecesse disso, salvando Nando de todos os apertos e perdoando seus pecados. É uma preocupante romantização desse cargo. No fundo – no fundo mesmo – não deveríamos estar torcendo por ele. Mas, aqui estamos...
O amadurecimento da série também apareceu na escolha por planos de maior duração, na exploração de mais ângulos e inserção de alguns filtros de imagem que afastaram a edição daquela claridade hiper realista das novelas. No texto, contudo, o problema de superficialidade persiste. Não é nada tão grave quanto em outras séries nacionais do catálogo, mas ainda está ali. Nunca aparece quando os diálogos abusam do jargão da periferia, o que já sinaliza que o exercício de naturalidade tem que ser aplicado em todos os núcleos.
A quarta temporada provavelmente acontecerá, do contrário, os fãs darão início a uma revolta civil. A última cena deixa o que podemos chamar de “o gancho dos ganchos” flutuando em áudio conforme rolam os créditos. Tudo pode mudar... ou não. Uma coisa é certa; os responsáveis pela série estão em sintonia com as coisas mais importantes de uma dramaturgia: saber quem são os seus personagens, de onde eles vieram e para onde eles vão. O futuro não pode ser qualquer coisa, então, sintonize diretamente na ideia de coerência. Esse é o caminho. Essa é a “fita”.