As narrativas de periferia – ou da “quebrada – já são uma espécie de subgênero da dramaturgia nacional. E sabemos que quando um tipo de narrativa faz nascer um gênero, faz parte do processo enquadrá-lo em um sistema de regras. Séries e filmes que se passam na “quebrada” repetem conflitos, mas não precisam, necessariamente, dançar na mesma melodia. Sintonia é uma produção que ganhou prestígio justamente porque reconheceu o valor de não cair em armadilhas.
O subgênero da “quebrada” sempre inclui o bandido que tenta mudar de vida, mas a sociedade não permite. Também sempre tem o cidadão comum que acaba virando bandido porque a sociedade o condena. As drogas, as armas, o linguajar, os gestos, a ternura das relações familiares... Essas narrativas precisam desses tópicos porque, enfim, eles representam grande parte da realidade da favela. É só isso? Não. É só isso que aparece nas dramaturgias do mercado? Sim. É uma questão de recorte.
Sintonia faz um check em todas essas características. Contudo, ela nunca cedeu ao impulso de cristalizar seus personagens dentro da mesma proposta. O crime está em volta, mas Rita (Bruna Mascarenhas) e Doni (Jottapê) existem para reforçar os outros aspectos da vida em comunidade. Ela no aspecto sócio-político e ele no aspecto cultural. Nando (Christian Malheiros) é o personagem que conta do crime organizado, mas a série evita cometer o erro de desequilibrar o jogo entre os três. Pelo menos até agora, quando a quarta temporada resolveu ditar outra dinâmica.
Era esperado que após o tiroteio que encerrou a terceira temporada, Nando fosse ser o objeto principal dos primeiros roteiros. Ele estava perdendo tudo, então, um grande tempo precisaria ser gasto reajustando a ousadia da mudança. A mulher dele foi presa, ele está sendo traído por aliados e se indispondo com seus amigos de longa data. Nando é uma das peças mais importantes do jogo, mas não é o único protagonista. Rita e Doni também são. A série acabou se esquecendo dessa máxima e fez uma quarta temporada focada demais em resolver a vida de apenas uma ponta do trio.
Sem sintonia
Dos três protagonistas, Doni esteve o tempo todo um pouco deslocado da relação entre Rita e Nando; e não só agora, mas na série em geral. Dessa vez a sensação é ainda maior, já que o que foi separado para desenvolver Nando encosta diretamente em Rita. Doni precisou reavaliar sua carreira e mesmo nas bordas da “trama central” acabou sendo um frescor que evitou o domínio da narrativa em torno da organização criminosa. A série só ganhou com a chegada das batalhas de hip hop, aumentando positivamente o alcance das bases culturais desse projeto.
Rita acabou sendo sugada para a órbita das encrencas de Nando. Ela é uma personagem muito importante na receita, porque mantém viva a ótica intelectual dos acontecimentos. Há um elemento emocional forte na relação entre ela e Nando, mas essa questão precisa de mais investimento na construção do texto. Rita está crescendo para um lugar de racionalização das ações do sistema (dentro e fora da comunidade) e até mesmo da fé; o que torna a dependência emocional com Nando – que a faz tomar decisões arbitrárias – questionável.
O bombástico final do terceiro ano deu lugar a um finale melancólico. Foi surpreendente ver como as escolhas dos roteiristas privilegiaram a lógica ao invés do grande espetáculo; e a série ganha por sempre tomar decisões elegantes. O efeito colateral dessa lógica foi o anticlímax, correto para a reputação da temporada, mas um pouco enfadonho. Diante de uma inevitável quinta jornada, o destino desses personagens começa a precisar de um horizonte que não se afaste a cada investida, como um arco-íris. Sem um final à vista, começam as saídas rocambolescas e foi um pouco disso que vimos aqui.
Ao passo em que a vida criminosa de Nando ganhou a maioria do destaque da temporada, ela também funcionou como uma pedra no sapato do ritmo. As tentativas de tirar a esposa da cadeia e a reafirmação de seu lugar como líder foram conduzidas com cuidado, mas com uma estranha morosidade e total obviedade. A questão com Nando é que quanto mais sua trama cresce, mais a série vai se tornando uma melodia de uma nota só, reduzindo sua essência aos aspectos negativos do subgênero da “quebrada”. Favela não é só crime; mas a quarta temporada de Sintonia faz parecer que é.