Quem não conhecia o mundo de Sombra e Ossos quando ela chegou à Netflix, em 2021, se encantou com a jornada de Alina (Jessie Mei) muito rapidamente. Era impossível não se encantar, justamente porque o mundo da protagonista é totalmente encantado. Uma terra paralela, um inimigo poderoso, uma classe de heróis fantásticos e uma órfã em busca de seu lugar no mundo... Tem fórmula mais certeira que essa? Se você fizer um esforço mínimo, vai se lembrar de pelo menos uns 5 títulos que usam a mesma premissa. Como tudo na arte, o importante não é originalidade, é carisma.
A primeira temporada da série tinha um ritmo lento, mas muito desse carisma. Foi animador ver Alina descobrir que ela era uma Grisha; a mais poderosa delas (como de costume), a escolhida, a prometida (como de costume). A personagem saía de simples cidadã para cidadã mais importante daquele mundo, responsável pela missão de destruir a “dobra” (uma espécie de muralha de sombras que passou a ser um ponto de tensões entre os dois lados que ela dividia).
Nessa primeira temporada, apesar dos primeiros episódios terem preferido ir com calma, ainda assim a série não perdia seu apelo emocional. A graça da coisa toda estava em acompanhar Alina descobrindo os códigos desse novo universo; vê-la lidando com a nova fama, as novas responsabilidades e com aquele grupo imenso de novos rostos que a acompanhariam dali para frente. Todos nós sabemos como uma história como essa vai se desenvolver, mas essa é, em parte, a razão pela qual continuamos assistindo. Somente produções que sabem lidar com exploração de carisma conseguem esse feito.
Essa forma concisa com a qual o showrunner Eric Heisserer resolveu levar os acontecimentos do primeiro ano foi importante para tornar o mundo de Alina mais acessível. Os detalhes que cercam a obra de Leigh Bardugo são inúmeros e sem o devido cuidado, nomenclaturas, hierarquias, expressões, podem acabar perdidas pelo caminho. Ir com calma era essencial. Contudo, quando as primeiras impressões da série começaram a apontar uma certa demora para “as coisas acontecerem”, a crítica deve ter se grudado na mente de Eric, que planejou uma segunda temporada decidida a fazer o completo oposto disso.
Dobrados demais
Essa segunda temporada tem uma sinopse bem simples até: após vencer Darkling (Ben Barnes), Alina parte com Mal (Archie Renaux) por uma jornada para encontrar “amplificadores” dos poderes dos Grishas. Esses amplificadores são descritos como criaturas que precisam ser mortas para que sirvam como propulsores desses poderes. Nesse caminho, Alina vai encontrar novos inimigos e novos aliados, enquanto, é claro, o Darkling se prepara para contra-atacar
A simplicidade dessa sinopse, entretanto, é vencida em 15 minutos, depois que a mitologia da série começa a se impor sem a menor timidez. Para os fãs dos livros a sensação foi especialmente mais vertiginosa, uma vez que Eric já tinha declarado que a segunda temporada usaria partes de vários livros, sem respeitar a ordem cronológica dos acontecimentos. Para os leigos, a temporada só soava nervosa. Para os leitores, a sensação foi de caos. Os longos 8 episódios cobrem uma quantidade tão grande de contextos, que uma confusão constante não seria incomum.
Temos a trajetória de Alina, a reunião dos Corvos com Nina (Danielle Galligan), o mergulho no passado de Kaz (Freddie Carter), a prisão de Matthias (Calahan Skogman), o inferno de Genya (Daisy Head) e mais meia dúzia de narrativas apresentadas por novos personagens. No meio de cada um desses núcleos, há vários desdobramentos, detalhes técnicos, históricos, mudanças de mitologia, adições à mitologia, novos poderes, novos artefatos e isso sem falar nas constantes revelações de parentescos desconhecidos. São muitas dobras.
Se metade desses detalhes for desconsiderado, o bruto da narrativa se mantém intacto. Apesar do caos, as motivações de cada um dos personagens que seguem essa salada são coerentes e se mantêm assim por todos os episódios. Há acertos inegáveis, como a chegada de Nina ao grupo de Corvos e a vindoura aparição de Nikolai (Patrick Gibson) como um dos maiores aliados de Alina. O personagem é puro carisma. Mas, algumas outras decisões soam bem esquisitas, como a de fazer Matthias passar vários episódios na prisão, esvaziando completamente a força de sua parceria com Nina.
Para os que sentiram sono no ano anterior, essa temporada tem doses cavalares de ação. Há uma ótima construção de tensões, que explode num penúltimo episódio que tira o fôlego. É quase como se essa fosse uma série da HBO, dada a maneira anticlimática com a qual os roteiristas conduzem o episódio final. Temos mais de 50 minutos de acontecimentos que poderiam facilmente ter inaugurado a temporada três. A organização narrativa soa instável por todo esse ciclo; e nesse final confirma essa dificuldade.
Mesmo assim, Sombra e Ossos não faz feio e vai divertir seus fãs. Há uma boa trama de ambiguidade maniqueísta vindo por aí e se os roteiristas não continuarem exagerando no glossário, as possibilidades são as mais promissoras. Ninguém deveria depender de um grisha da continuidade para conseguir ver uma série. Ninguém.