Séries e TV

Crítica

Star Trek: Strange New Worlds é o Ted Lasso de Jornada nas Estrelas

Série do Paramount+ faz bem enquanto provoca reflexões - tudo isso junto de uma bela homenagem ao cânone de Star Trek

13.07.2022, às 11H30.

Você certamente já reparou: é, cada vez mais, difícil encontrar algo realmente novo para assistir no cinema ou no streaming. Vítima da necessidade de se investir em sucessos certeiros e da massa de fãs das grandes franquias, a criatividade está na UTI. No entanto, nesse mar de material reciclado, a primeira temporada de Star Trek: Strange New Worlds mostra que, sim, o mais do mesmo ainda dá um bom (e necessário) caldo.

Parte dos investimentos da Paramount Global em turbinar o seu próprio streaming, o Paramount+, a nova série de Jornada nas Estrelas é um spin-off de Star Trek: Discovery. Porém, diferentemente da irmã mais velha, que tentou usar as bases estabelecidas da franquia para enveredar por caminhos que são (um pouco) diferentes, Strange New Worlds navega por sistemas solares bem conhecidos nesta primeira temporada. Acontece que a história tem uma base sólida para se construir, aquela da série clássica de Jornada nas Estrelas. Afinal, a criação de Gene Roddenberry é conhecida por usar o futuro e o espaço no papel de metáforas para tratar de temas bem terrenos como preconceito, segregação, misoginia e muito mais. Claro que nem tudo feito entre 1966 e 1969 envelheceu bem, mas era um avanço enorme para a época. Não por menos, Star Trek só foi realmente funcionar e ter grande apelo após o seu cancelamento, por meio das reprises em TVs regionais. 

Como contamos aqui nas primeiras impressões da série, Strange New Worlds se passa após os eventos do primeiro (e cancelado) piloto da série original, e também dos eventos da segunda temporada de Discovery. Por isso, ela não só resgata esse clima progressista da produção clássica, mas dá a ele contornos de onde estamos como sociedade em 2022. Ok, Star Trek: Discovery já tinha feito isso. Todavia, enquanto essa outra série tem um clima mais soturno, bélico até, a irmã mais nova é clara, propositiva, inspiracional. Após dois anos e meio de uma pandemia global, era exatamente o que os nossos olhos (e corações) precisavam encontrar. 

Mal comparando - até por não ser uma comédia -, esse é o Ted Lasso de Star Trek. Principalmente quando leva-se em conta essa positividade para encarar a vida e os problemas, a forma na qual assuntos complexos são abordados de forma lúdica e as reflexões trazidas por cada capítulo. Aliás, os Diamond Dogs (o grupo de apoio dos personagens masculinos de Ted Lasso) ganhariam muito com os vulcanos. Em certo momento, T’Pring (Gia Sandhu), noiva de Spock, diz: "​​A aceitação compartilhada do sacrifício mútuo é crucial para um relacionamento bem-sucedido." Tá aí um minuto de sabedoria que fez falta para o técnico Beard (Brendan Hunt), né?

Talvez a maior diferença entre as duas produções seja o fato do futebol ser apenas um pano de fundo, quase um simples acessório, de Ted Lasso. Já Strange New Worlds sabe usar muito bem a ficção científica e o legado que carrega. 

Um pé no passado, mas com olhar para o futuro

Para encarnar esse clima de aventura espacial, os produtores de Strange New Worlds deixaram de lado a atual estrutura para se construir o enredo de uma série. Em vez de um grande arco único (que, na prática, transforma temporadas em filmes de dez horas), a produção se valeu de episódios seriados, cada um com uma história com começo, meio e fim - seguindo o que Roddenberry e seus colegas faziam nos anos 1960.

Quer dizer, mais ou menos. Esses episódios antigos tinham estruturas de roteiro um pouco mais rígidas, até por serem obrigados a obedecer durações pré-definidas pela emissora, incluindo os momentos dos intervalos comerciais. No streaming não há algo tão fixo assim. Tem mais: Jornada nas Estrelas: A Série teve 29 episódios em sua primeira temporada. Houve tempo o suficiente para que os roteiristas contassem as histórias que quisessem, ainda que dentro de uma fórmula. Star Trek: Strange New Worlds só teve dez neste primeiro ano, o que é a realidade do video on demand - não dava para gastar energia com qualquer ideia.

É aí que entra mais uma boa sacada da nova produção: cada capítulo faz uma homenagem a um gênero ou subgênero da TV e do cinema, todos (de alguma forma) anteriormente trabalhados em décadas de Jornada. Tivemos, por exemplo, thriller político (episódio "Strange New Worlds"); ficção científica ao estilo A Chegada e Contatos Imediatos do Terceiro Grau ("Children of the Comet"); comédia romântica ("Spock Amok"); fantasia ("The Elysian Kingdom"); terror ("All Those Who Wander"); e até viagem no tempo numa linha De Volta para o Futuro ("A Quality of Mercy", que encerra a temporada). Todos, de alguma forma, trazendo camadas que se relacionam com a nossa vida em 2022.

Phases e tricorders

Uma das principais críticas à Star Trek: Discovery é como a série acaba, em alguns momentos, divergindo do cânone da franquia. Entre outras coisas, a produção adiciona uma nunca mencionada irmã adotiva de Spock, um visual dos Klingons completamente diferente do visto anteriormente e uma nave estelar com um nunca mencionado motor de esporos, que permite “saltar” pelo espaço - tudo isso mesmo se passando antes dos eventos de boa parte da saga. 

Strange New Worlds adota uma abordagem completamente diferente. Sim, o design de produção entendeu que não poderia seguir de forma estrita o que havia sido feito nos anos 1960. Seria anacrônico. Porém, soube manter a base desse visual para criar algo novo, bonito e instigante, numa espécie de art pop do século XXI. A começar pelos uniformes, que lembram visualmente aqueles usados por William Shatner e Leonard Nimoy, mas adicionam uma nova (e bela) camada de modernidade, incluindo microtexturas. Tricoders, phasers e diversos equipamentos foram recriados tendo como referência o design de produção da antiga Desilu, que produziu a série original. Não deixa de ser o melhor dos mundos. 

Em termos de elenco, Strange New Worlds também pega o passado e reinterpreta para tempos presentes. Ele segue aquilo definido no episódio piloto descartado de Jornada nas Estrelas e expandido na segunda temporada de Discovery. Ou seja, temos Christopher Pike (Anson Mount) comandando uma tripulação liderada pela Número Um (Rebecca Romjin) e Spock (Ethan Peck) - agora com novas adições. De certa forma, o elenco é extremamente redondo, com muita química em cena. É como se eles estivessem juntos há décadas - e Pike é, na maioria das vezes, aquele líder que dá gosto de ter na cadeira de capitão, quase um Ted Lasso do espaço (ainda que mais sério e sem bigode). Bem diferente da encarnação original do personagem, diga-se.

Não é só nisso onde o elenco inova, não. Além da Número Um ganhar mais camadas, tem outra personagem originalmente interpretada por Majel Barrett que voa em Strange New Worlds: a enfermeira Christine Chapel. Se antes ela era quase que um mero apoio, a nova versão ganha muita importância dentro da história, em uma interpretação energética de Jess BushAliás, enquanto o Pike dos anos 1960 reclamava que não estava acostumado com a presença de mulheres na ponte, agora elas invadiram o comando da USS Enterprise. 

Fechando com um laço vermelho

Confesso que, ao assistir a cada semana, uma dúvida ia me consumindo: como encerrar esta primeira temporada de forma satisfatória? Explico: quando se pensa em grandes arcos para cada ano, é possível concluir esse grande enredo com um final apoteótico, quase na mesma linha de um último capítulo de novela da TV Globo. Só que, ao se fazer histórias seriadas, fica mais difícil seguir essa fórmula. A série clássica de Jornada nas Estrelas, por exemplo, não tinha nenhum tipo de conclusão. Já A Nova Geração passou a investir em episódios duplos, com o hiato entre temporadas no meio - criando, assim, um cliffhanger, um gancho, para o próximo ano. 

Qual seria então o caminho trilhado por Strange New Worlds? Bom, os produtores Alex Kurtzman, Jenny Lumet e Akiva Goldsman (um notório fã de Jornada) encontraram uma saída. Ainda em Discovery, alguns novos contornos foram adicionados ao capitão Pike - basicamente, o fato dele saber que, em alguns anos, sofrerá um acidente enquanto salva um grupo de cadetes da morte certa, algo que o deixará tetraplégico e deformado para o resto da vida. Tal fato não é spoiler: é revelado no episódio duplo "A Coleção", da série clássica.

A cada semana, Strange New Worlds foi trazendo de volta esses elementos e adicionando novos conflitos, evoluindo com a trajetória do personagem. Não só ele, aliás: cada membro da tripulação tem o seu arco, galgando degraus a cada nova história - algo que, obviamente, a franquia sempre fez independentemente da estrutura geral que adotava. O último capítulo desta primeira temporada, "A Quality of Mercy", é um grande encerramento para tudo isso, fechando todas as pontas soltas do arco pessoal de Pike.

Tem mais: no já mencionado estilo De Volta para o Futuro, vemos como as ações de Pike para escapar de seu destino trágico mudam o futuro - mais exatamente, os eventos de "O Equilíbrio do Terror", um dos melhores (se não for o melhor) episódio de toda a franquia. 

É interessante perceber como Strange New Worlds brinca com o cânone ao mesmo tempo em que se desprende dele. Às vezes, diálogos e cenas são reencenados quase que de forma idêntica. Na revelação da verdadeira face dos romulanos, por exemplo, é resgatada aquela atuação exagerada da TV de antigamente, dando um ótimo ar farsesco que nos deixa entre o choque e o riso. Em outras horas, cria-se algo novo, diferente, quase que repensando o que Roddenberry e a sua sala de roteiristas fariam com a tecnologia de hoje. 

“Mas isso não cairia justamente na falta de criatividade mencionada no começo da crítica?”, você pode dizer. Claro que cai. Porém, aqui, isso não é demérito. Jornada nas Estrelas já fez esse tipo de retorno ao passado diversas vezes (Enterprise e Deep Space Nine são, talvez, os maiores exemplos). Mais do que isso: a franquia fez 55 anos em 2021 e, à parte do fato de ter diversas séries em andamento no momento, não teve algo que fosse de fato uma comemoração à altura desse acontecimento. "A Quality of Mercy" preenche justamente essa lacuna.

Ainda, o último episódio introduz o James T. Kirk de Paul Wesley (de The Vampire Diaries) em um interessante contraponto dele com o Pike de Mount, que já conquistou um lugar no coração dos fãs. É curioso ver como eles agem de forma diferente em uma situação tão icônica. 

Um segundo ano de Star Trek: Strange New Worlds está garantido, com mais dez capítulos semanais chegando em 2023. Que essa nova leva de missões seja tão divertida quanto foi a primeira.