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Crítica

Ted Lasso injeta dose essencial de otimismo em 1ª temporada hilária

Comédia do Apple TV+ conquista com texto afiado e personagens profundamente humanos, quer você seja fã de esporte ou não

22.07.2021, às 09H14.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H07

Associar otimismo à inocência -- ou, mais grave ainda, à pura ignorância -- é um raciocínio quase imediato ultimamente, como se ter esperança só pudesse ser sinônimo de burrice e insensatez. Por isso, quando Ted Lasso (Jason Sudeikis) desembarca em Londres, pronto para comandar um time de futebol sem sequer saber que o jogo tem dois tempos, é fácil tomá-lo por idiota. Apenas alguém sem noção da realidade poderia se comportar de modo tão descabido. Mas é justamente se aproveitando dessa arrogância coletiva que o técnico americano rende não apenas todo o AFC Richmond, entre jogadores e executivos, como também a legião de espectadores que a série conquistou no último ano. O jeito Lasso de ser não é tolo. Talvez a única tolice mesmo seja não enxergar sua genialidade.

Agora, engana-se quem pensa que a sabedoria dele é comprovada por numerosas vitórias, ou um apoio incondicional da torcida porque, como bem diz o técnico, não é assim que se mede o sucesso de uma empreitada. Sua esperteza também nada tem a ver com seu conhecimento eclético sobre literatura, música e cinema, nem com sua ousadia em encontrar uma brecha para levar sua experiência com futebol americano amador para o campo da Premier League. Na realidade, Ted é genial por um motivo mais simples, mas ainda assim nada simplório: sua humanidade.

Na sua boca, nem frases inspiradoras, nem trocadilhos bobos se esvaziam. Porque com a mesma despretensão que cita uma curiosidade sobre a memória do peixe dourado, ele presenteia o time com obras de autores consagrados, como F. Scott Fitzgerald. O que determina o modo e o que ele fala é sua empatia pelo interlocutor em toda a sua complexidade. Ele é um daqueles raros casos de pessoas que enxergam as outras -- às vezes até com mais clareza que elas mesmas -- para além dos seus cargos, poses e “polidez”.

É evidente que há algum nível de exagero na construção da personalidade do técnico, mas ela nunca tropeça na caricatura -- o que é curioso, considerando que a inspiração para a série veio de uma versão estereotipada e sarcástica do americano no exterior, que habitou comerciais da NBC Sports. É o combo da performance de Jason Sudeikis, que transborda uma perspicácia lúdica, e do roteiro, tão bem construído e engraçado, que alça a figura do protagonista a este lugar genuíno.

Por isso, por mais bom moço que seja Ted Lasso, ele nunca chega a se transformar em uma versão americana do urso Paddington, isto é, um peixe fora d’água que ajuda a aperfeiçoar aqueles à sua volta, mas segue como chegou. Enquanto apoia os jogadores e a diretoria, cada um de uma maneira, o técnico também é posto para encarar seus problemas e aprender com o time.

Desde o primeiro episódio, a série do Apple TV+ dá pistas de que há mais por trás da figura de Ted Lasso do que seu espírito Poliana. No entanto, talvez o momento que sintetize tudo isso muito bem seja no jogo de dardos contra o antigo dono do clube -- e o personagem mais próximo do vilanesco -- Rupert Mannion (Anthony Head). Nesta partida, o técnico está defendendo a atual diretora do Richmond, Rebecca Welton (Hannah Waddingham), das pequenas torturas psicológicas do seu ex-marido. Entretanto, há mais em jogo do que o bem-estar da sua mais nova amiga. Ted está jogando também por todo o histórico de vezes que foi subestimado pelas pessoas por não ter medo de fazer perguntas ou parecer estúpido -- e em mais de uma ocasião, o próprio Rupert foi desse nível de arrogância. Então, quando ele diz para seu adversário “seja curioso, não crítico”, citação do poeta Walt Whitman, não é uma atitude leviana. É um momento crucial para o personagem não deixar ninguém com dúvidas: ele não é inocente, iludido ou ignorante, nem alguém que tem tudo na vida resolvido. Mas, como todos, ele merece respeito.

Nesse sentido, Ted Lasso é uma série acolhedora, quer você goste ou não de futebol. Porque, no fundo, o esporte é apenas o plano de fundo do que está em tela. Claro, a comédia tem muito cuidado para agradar os aficionados por futebol, mas não o faz de forma a excluir aqueles que, como seu protagonista, estão por fora das regras, dos times e dos pormenores da competição inglesa. Em essência, a produção trata de pessoas tentando ser as melhores versões delas mesmas e, por sorte, elas podem contar com um time inteiro para ajudá-las a chegar lá, mesmo quando cometem seus deslizes.

Porém, como é de se imaginar, os 11 titulares não são explorados com a mesma intensidade. Na realidade, Ted Lasso foca em personagens-chave, que causam um impacto em cadeia no restante do time, entre os quais estão jogadores, membros da diretoria e auxiliares do técnico. Veja bem, isso não quer dizer que os coadjuvantes são menos complexos que figuras como o artilheiro presunçoso Jamie Tartt (Phil Dunster), o durão Roy Kent (Brett Goldstein) ou o inseguro Nate (Nick Mohammed). Todos os personagens que habitam os arredores do estádio do Richmond têm parte da sua individualidade insinuada, nem que seja em momentos cômicos espalhados pelos 10 episódios da temporada. Assim, o espectador não se apaixona só por Ted Lasso, mas pelo clube como um todo. Afinal, como não se encantar com os conselhos diretos de Mae (Annette Badland), a dona do pub onde os torcedores acompanham os jogos? Ou, então, se satisfazer com o carinho sutil do jornalista Trent Crimm (James Lance), do The Independent, pela filosofia do Ted?

A comédia alcança esse efeito ao criar pares divertidos e muito espertos. O triângulo amoroso entre Jamie, Roy e a modelo Keeley Jones (Juno Temple) é certamente um dos mais legais de se acompanhar, mas não se compara à amizade inesperada entre a subcelebridade e a diretora Rebecca. Porque, no final, a relação das duas é mais do que espirituosa. É um dos grandes exemplos de como Ted Lasso prova que o futebol não precisa ser um ambiente dominado pela masculinidade tóxica. Mesmo com tanta testosterona envolvida, homens têm espaço para manifestar sua sensibilidade, assim como mulheres podem ser tridimensionais e ter uma relação de cumplicidade autêntica.

Dito isso, não é surpresa o número de indicações ao Emmy que Ted Lasso conseguiu na sua temporada de estreia. Depois de um ano tão turbulento, contagiar público e crítica com um otimismo genuíno, através de texto e performances apaixonantes, é de fato um feito a ser celebrado. Se a comédia sairá vencedora ou não, já é outra coisa. Mas, como é na série, não dá para frear os efeitos do jeito Lasso de ser com uma derrota.

Nota do Crítico
Ótimo