Ted Lasso/Apple TV+/Reprodução

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Crítica

Sem perder otimismo confortável, Ted Lasso propõe turbilhão emocional no 2º ano

Entre deslizes pontuais e episódios inspirados, comédia do Apple TV+ volta a encantar seus espectadores com futebol cor-de-rosa

15.10.2021, às 16H05.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H08

Depois de assistir à segunda temporada de Ted Lasso, é difícil encarar a morte do mascote do AFC Richmond nos minutos iniciais como apenas um infeliz acontecimento. Para além do humor diante do choque, o adeus do velho galgo inglês era um aviso. Sim, a temporada causaria mais lágrimas dessa vez, e abalaria as convicções até dos mais otimistas dos personagens -- futebol não é só vida, afinal de contas. Mas, mais do que isso, os 12 episódios marcariam a despedida daquele que por tanto tempo foi visto como o membro mais dócil e fiel da equipe técnica: Nate, the Great (Nick Mohammed).

Não por acaso, a série começa e termina no seu rosto, e os momentos, espelhados, evidenciam bem como sua transformação foi mais profunda do que simplesmente ganhar cabelos grisalhos ou mudar as cores do uniforme. O auxiliar técnico, antes tão maltratado e carente, finalmente recobrou sua confiança e encontrou o reconhecimento que almejava na forma de um tapinha nas costas. Mas, com ele, veio também uma arrogância quase vilanesca, e a confirmação de que todos, inclusive os espectadores, o subestimaram. Porque enquanto seu ego ferido era aparente -- e, por isso, odiá-lo parece tão fácil agora --, seu sofrimento não. Na realidade, é somente quando Nate explode que fica clara sua dor: ele estava em busca da aprovação da figura paterna mais próxima que pode encontrar e, novamente, sentiu-se rejeitado e posto de escanteio.

Há de se convir que a dramatização da mudança de comportamento de Nate tem lastro, em alguma medida, em um deslize grave dessa temporada, isto é, preferir pesar a mão em cliffhangers impactantes em vez de manter-se coerente com o perfil de seus personagens -- outro exemplo seria a decisão “surpresa” de contratar certo jogador. No entanto, a revelação dessa faceta é também sintomática do desejo da série de humanizá-los. Em uma temporada que se propôs a baixar a guarda do seu protagonista supostamente perfeito e dos durões Roy Kent (Brett Goldstein) e Jamie Tartt (Phil Dunster), ela solidificou a de outro. Assim, o título do Apple TV+ fortaleceu seu argumento geral com uma camada a mais de complexidade. Ninguém de fato é unidimensional. Nem os “malvados”, nem os “bonzinhos”.

Mas, se o processo de Nate aconteceu às margens -- é interessante reparar, por exemplo, que ele não tem cenas sozinho com Ted além do estouro, assim como é gradual seu envelhecimento, e há um mérito nesse desenvolvimento sutil --, a jornada de Jamie foi muito mais aparente. O isolamento do jogador e agora ex-participante de reality show o obriga a se colocar constantemente em posições de vulnerabilidade, e o roteiro sabe aproveitar a veia cômica desses momentos, sem sacrificar a emoção e a relevância deste passo para o personagem. Deste modo, o abraço que ele dá em Roy, o ponto alto de toda a sua trajetória, não se esvazia. Pelo contrário, enfatiza o laço fraternal que se estabeleceu entre os dois.

Embora opostas, as jornadas de Nate e Jamie têm um ponto em comum, isto é, a fagulha que as iniciou tem relação direta com o relacionamento disfuncional que vivem com seus pais. Lembre-se da primeira temporada: ambos são menosprezados pelos patriarcas das suas famílias, a diferença é que cada um reagiu à sua maneira. Um buscou forças na arrogância e o outro se apequenou -- e esses incômodos voltam a aparecer nos novos episódios. Mas, no fundo, os dois arcos refletem o tema geral deste segundo ano, porque a paternidade é uma recorrência a todos os personagens, em maior ou menor grau.

Entre o luto de Rebecca (Hannah Waddingham) e Roy cada vez mais assumindo o posto de figura paterna para sua adorável sobrinha Phoebe (Elodie Blomfield), o destaque não poderia ser outro senão o próprio Ted Lasso. Além de sofrer com a distância do próprio filho, pela primeira vez desde a adolescência o técnico lida de frente com o suicídio do pai. Para isso, porém, a série colocou no seu caminho alguém que mexeria com seu ego e tiraria das suas mãos a função que julgava ser sua, a terapeuta esportiva Dra. Sharon (Sarah Niles), uma decisão esperta e deliciosa.

A rivalidade inicial e, mais tarde, a amizade conquistada entre os personagens de Sudeikis e Niles é divertidíssima, mas de uma maneira nova para Ted Lasso, porque a assertividade da psicóloga balança o protagonista e seu mundo futebolístico cor-de-rosa. Sim, o campeonato inglês da comédia ainda é fantasioso -- só aqui a exposição dos maus feitos do maior patrocinador do clube não teria consequências outras que não conquistar admiração do time e da imprensa --, contudo seu discurso nesta temporada é muito real. No ano em que o mundo parou para discutir a saúde mental no esporte depois de assistir à ginasta Simone Biles desistir de provas da Olimpíada para cuidar de si mesma, Ted Lasso deu mais projeção ao debate.

Ainda que se permita ficar mais séria, a comédia não perde sua faceta confortável e recompensa os fãs apaixonados não apenas com muitas recorrências, seja como props em cena ou piscadelas no meio de diálogos aparentemente banais, mas com episódios inspirados. Não tem como não se encantar com as propostas de "Carol of the Bells" e "Beard After Hours", duas narrativas fora da curva para Ted Lasso e, vale dizer, embaladas por trilhas sonoras óbvias, mas nem por isso menos especiais. São dois abraços no meio do turbilhão emocional que a série se propôs a explorar nesse último ano, e certamente ganharão o coração dos fãs. Do mesmo modo, o lado mais romântico da narrativa também é envolvente e um deleite de acompanhar, com destaque para o surpreendente (pero no mucho) casal da vez.

Ainda que tropece em um momento ou outro, Ted Lasso encerra sua segunda temporada com a certeza de que o AFC Richmond terá desafios ainda maiores pela frente -- e, para variar, o campeonato inglês será apenas o pretexto para acompanharmos essa história. Entre ameaças a casais queridos e amizades desfeitas, o derradeiro ano da série promete fortes emoções envelopadas com a bobeira que tanto confortou seus espectadores.

Nota do Crítico
Ótimo