Séries e TV

Crítica

Escorando-se na autorreferência, Ted Lasso se despede com temporada sentimental

Ainda que exista recompensa, excesso de easter eggs não disfarçam inaptidão de amarrar arcos relevantes

13.06.2023, às 15H56.
Atualizada em 31.08.2023, ÀS 12H05

Esperar muita nuance de Ted Lasso na sua terceira temporada seria desconsiderar parte relevante do que tornou a série atraente para começo de conversa. Trata-se, afinal de contas, de uma comédia centrada em um mentor que, mesmo reconhecendo seus pontos cegos, é tido como o pináculo da empatia e sabedoria. O treinador é, por essência, um herói exemplar e no sentido maniqueísta da expressão mesmo. Não só não tem nada que ele possa fazer que o tiraria desse posto, como ele também tem um contraponto evidente na figura arrogante e ardilosa de Rupert (Anthony Head). Quer dizer, o Richmond AFC opera entre “os dois lados da Força”, e até seu contexto futebolístico prefere abraçar a fantasia e o idealismo do que apresentar os conflitos com mais do que um toque de realismo.

Este é um pacto que foi estabelecido entre a produção e o público desde a estreia, muito pelo seu efeito reconfortante. No fundo, todo mundo sabe como o esporte pode ser um ambiente de perpetuação de abusos e preconceitos, e que na vida adulta não existem resoluções plenas. Mas, por cerca de 30 minutos todas as semanas, uma realidade alternativa preenchia inseguranças e frustrações com uma dose intensa de otimismo, que deixava até o mais cínico dos espectadores com vontade de acreditar nas pessoas. E que não fiquem dúvidas: isso não necessariamente implicaria num problema. Na realidade, até o último ano do seriado, este era um dos seus principais méritos, sobretudo durante a pandemia, quando se tornou tão popular.

Contudo, a falta de sutileza passou a ser incômoda na sua reta final, quando Ted Lasso priorizou a autocelebração em vez do desenvolvimento completo dos seus personagens. Explico: por mais adoráveis e recompensadores que fossem os numerosos callbacks — e alguns deles de fato foram —, eles passaram a funcionar mais como o esqueleto dos episódios do que uma piscadela pontual e charmosa para o público. Essa inversão ficou particularmente perceptível no finale que, não à toa, é comparável aos finais de novela, e não no bom sentido. Porém, a verdade é que não é exclusivo dele. No fundo, o episódio é apenas o exemplo mais constrangedor de como querer agradar demais pode subtrair a potência de uma trajetória até então satisfatória.

Na hora de arrematar o destino de tantos personagens adorados, o seriado se mostrou inconstante na exploração dessa área cinzenta entre “bem” e “mal” — e, pela primeira vez, de forma tão veemente. Enquanto alguns felizardos ganharam o privilégio de ter um arco com começo, meio e fim, outros passaram por turbulências apenas para terminarem no mesmo lugar, quase como se Ted Lasso estivesse num cabo de guerra interno entre ser uma sitcom ou alçar o treinador como causa de mudanças positivas — algo que, aliás, é repetido vezes demais para soar uma verdade irrefutável.

Basta observar a diferença de tratamento que Jamie Tartt (Phil Dunster), Nate (Nick Mohammed) e Keeley (Juno Temple) receberam nesta temporada. Os três foram postos nos holofotes como algumas das figuras que conduziriam o olhar do espectador durante a Premier League — até porque, convenhamos: em uma série com um elenco tão grande, é necessário fazer escolhas. Logo, a expectativa era que ao menos eles teriam seus altos e baixos explorados de forma substancial, cuidadosa e gradual. No entanto, esse não foi o caso da agente de relações públicas.

Ainda que fosse, dentre eles, a figura diante do arco mais delicado por estar distante do clube e, pela primeira vez em tela, retratando sua bissexualidade, foi ela quem teve a história mais truncada. A série deliberadamente tirou a chance do público de vê-la amadurecer, reservando etapas importantes do seu crescimento para meras linhas de diálogo com terceiros. O relacionamento com Jack (Jodi Balfour) mesmo, que tinha tudo para ser significativo para a personagem tanto do ponto de vista pessoal, quanto profissional, foi encurtado de tal forma que deixou no ar por que os criadores o propuseram em primeiro lugar. Considerando que Ted Lasso foi capaz de repetir aqui o êxito das temporadas anteriores e dar aos personagens mais coadjuvantes, como Will (Charlie Hiscock), seu momento de brilhar, é difícil não se frustrar com a decisão de tomar atalhos na hora de explorar uma das pessoas mais relevantes — para devolvê-la praticamente ao mesmo lugar.

É verdade que Keeley foi a vítima mais notória da temporada, porque os já mencionados Jamie e Nate não só tiveram tempo de tela suficiente para ir do ponto A ao B, como seus intérpretes tiraram todo proveito da situação. Mohammed fez o que parecia impossível: aproveitando a condução doce e esperta do roteiro, o ator criou todas as condições para a redenção do agora treinador, lembrando por quê torcemos por ele lá atrás. Agora, Dunster simplesmente colocou a série debaixo do braço e fez o que quis. Ele é o claro ponto de destaque neste ano de Ted Lasso, e genuinamente não seria nada absurdo vê-lo ser reconhecido com uma indicação ao Emmy. Ele, sim, deu nuance para um personagem que, na primeira temporada, parecia unidimensional — e o fez sem aparentar esforço.

Entre erros e acertos, Ted Lasso não perdeu de vista seu objetivo primordial e foi capaz de criar momentos de aquecer o coração. A entrevista coletiva de Roy (Brett Goldstein) após a expulsão de Isaac (Kola Bokinni) é apenas a menção mais óbvia, porque daria para citar a conciliação do capitão com Colin (Billy Harris), a desventura de Rebecca (Hannah Waddingham) em Amsterdã ou, mesmo, um punhado de outros. De fato, nunca foi sobre vencer o campeonato inglês, mas sim sobre recuperar a humanidade dessa equipe — e foi esse espírito pouco cínico que esses trechos encapsularam.

Ironicamente, por mais que essas cenas sejam recompensadoras, elas não são suficientes para tornar esta temporada excelente. Na verdade, talvez nem mesmo ótima. É por saber o que a série pode oferecer enquanto construção de arco que é particularmente decepcionante ver alguns desses artifícios se tornarem muletas, em vez de alicerces para jornadas emocionais genuínas. Há satisfação em entender as piadas e piscadelas, chorar aqui e ali e se contentar com o felizes para sempre temporário. Mas, em comparação aos anos anteriores, dessa vez Ted Lasso foi um pouco poliana demais para seu próprio bem.

Nota do Crítico
Bom