“Isso é a vida. Isso não é o término dos Beatles.” A frase que Peter Jackson usou para descrever The Beatles: Get Back ressoa por todas as mais de sete horas de duração do especial. Não existe, aqui, uma releitura do que aconteceu com os Beatles em 1969. Não há um desvio, ou uma vontade de descontrair enquanto os Beatles desfalecem. Não é uma teoria do que aconteceu. É um olhar, mais profundo e invasivo do que nunca, de suas relações, e um que permite que os próprios integrantes possam refletir na tela o que sentem em um momento tão único da história da música - e de suas vidas.
Vindo de um cineasta que adora dividir projetos em três partes, o documentário pode, para alguns, parecer longo. Mas é inimaginável que um fã do quarteto não se deleite com cada uma das cenas de The Beatles: Get Back. Absolutamente mestre em montar épicos, Peter Jackson é provavelmente a maior estrela do resultado final, o realizador de algo até hoje impensável para os fãs. O diretor apresenta os Beatles de forma inédita, e traduz a camaradagem que existe - e perdura - mesmo quando cada um amadurece tão claramente ideias musicais individuais.
A reunião dos quatro músicos - filmada por Michael Lindsay-Hogg para culminar em um especial de TV que acompanharia o álbum Let it Be - já começa de um momento hesitante, dito em todas as palavras em uma das primeiras discussões íntimas que o documentário revela. Reunidos pouco depois de começar os ensaios, os quatro refletem sobre a perda precoce de Brian Epstein, gerente do grupo até sua morte, em 1967. Na sequência, uma das quais Jackson usa apenas áudio em cima de imagens simbólicas, os Beatles demonstram os efeitos da falta de um líder. O vácuo é preenchido, naturalmente, por Paul McCartney.
The Beatles: Get Back tem um gosto moderno que é transmitido não apenas pelas imagens sensacionais retrabalhadas por Jackson, mas porque até parece um reality show. Eventualmente usando áudios e imagens de câmeras escondidas, Get Back aciona o desejo pela invasão da intimidade e coloca os fãs em um lugar quase indiscreto, revelando conversas privadas entre McCartney e John Lennon. No caminho, que escancara os desconfortos, o efeito não poderia ser outro: aqui, os Beatles são humanos. Depois de mais de 50 anos de documentários, filmes e shows, o que Peter Jackson consegue é colocar os Beatles no chão. Nesse processo, observamos como cada discussão, argumento, desentendimento e incômodo é familiar. É tangível.
Jackson constrói toda uma narrativa a partir dos registros, e é fantástico durante todo o projeto, se divertindo com os sentimentos que cada pequeno relance escolhido traduz. São muitos, desde olhares de ternura até o mais visível desconforto, e apesar de cada imagem falar por si só - algo evidente, principalmente, em qualquer momento que foca na relação entre John e Yoko - Jackson sabe usar muito bem o que tem nas mãos. Em uma de suas sequências mais brilhantes, pouco depois de George Harrison se levantar e dizer “bom, acho que estou deixando a banda”, o diretor simboliza o movimento com um longo caos sonoro, para depois mostrar quão real foi a decisão, com discussões ainda mais terrenas e cruas entre os integrantes.
A saída de George, para qualquer fã dos Beatles, é bombástica. Vê-la sob a perspectiva terrena, com um indivíduo infeliz levantando e dizendo de modo tão direto sua decisão, é um leve tapa na cara. Este não é apenas um dos momentos mais importantes e reveladores de Get Back, como é também um lembrete que, por mais próximo que tentemos chegar, o mistério que envolve os Beatles sempre permanecerá. A tensão, resolvida após duas reuniões entre os integrantes longe das câmeras, segue intrigante, e é até um confortável retorno ao status quo no meio de Get Back: os Beatles ainda são os Beatles, e você nunca os conhecerá totalmente.
Disney+/Divulgação
Entre a falta de organização e planejamento (que, lá pela terceira parte, já tem um especial de TV cancelado e só um show incerto marcado), a dispersão em ensaios e a dificuldade de atingir uma qualidade sonora aceitável, Jackson constrói um arco narrativo com direito a cliffhanger e até desenvolvimento de personagem. Além da humanização, existe uma história clara contada aqui, e ela é do amadurecimento individual dos Beatles. Talvez por isso a separação que viria no ano seguinte agora pareça ainda mais natural. Entre as faixas consideradas para Let it Be estão “Gimme Some Truth”, “All Things Must Pass” e “Another Day”, cantadas com a despretensão e o desconhecimento de que virariam clássicos de carreira solo (de Lennon, Harrison e McCartney, respectivamente).
E porque uma boa história precisa de um respiro final antes do terceiro ato, no meio da Parte 2 Jackson introduz o responsável por acalmar os nervos de todos os envolvidos no ambiente - que naquele ponto, já havia mudado para o estúdio da Apple -, Billy Preston. É uma aparição gigante de uma figura que fala pouco e faz muito em Get Back. Fazendo jus ao termo “quinto Beatle”, Preston serve como oxigênio para os integrantes, e em um dos momentos mais curiosos chega a ser considerado como possível novo membro por Lennon. “Já é difícil o suficiente com quatro”, responde McCartney.
As interações entre Lennon e McCartney, inclusive, estão entre os maiores tesouros de Get Back, que parece ter vindo para contrariar alguns dos diversos mitos que rodeiam a fase final dos Beatles. Em quase oito horas de duração, não existe uma alfinetada entre os dois, que parecem parceiros musicais e colegas de banda absolutamente confortáveis com suas posições no grupo. O incômodo está principalmente em George, que parece até tomar a reputação de inseguro de Lennon. A rígida presença de Yoko, que chega a ser discutida entre os membros do grupo, é entendida por todos como algo desimportante.
Da chegada de Preston até o show no telhado da Apple, os Beatles se seguram uns nos outros em uma relação renovada, e com os integrantes mais estáveis, Jackson exerce um papel maestral ao inserir aqueles prenúncios do que estava por vir, nas reuniões de John Lennon com o futuro gerente (e problema) dos Beatles, Allen Klein. É como se o diretor introduzisse a fase final de Get Back com um aceno de que o que vem depois está fora das nossas mãos. Mesmo assim, ao chegar naquele show do telhado, o cineasta levanta os espíritos do espectador com entradas ótimas dos sortudos indivíduos que capturaram a performance sem saber que estavam testemunhando o último show dos Beatles.
É um fechamento perfeito para uma jornada que teve como resultado tornar os Beatles seres humanos. Passando um cotidiano caótico, Jackson fez da existência de McCartney, Lennon, Harrison e Ringo Starr uma mistura perfeita de épico e mundano, para depois colocá-los muito acima do chão, literalmente, curvando-se para enxergar a população de Londres. Get Back pode aterrar os Beatles o quanto quiser, e mostrar que eles sentem a mesma coisa que nós. Mas, no fim das contas, aqueles homens de Liverpool seguem lá em cima, elevando o mundo para um lugar onde os Beatles existiram, foram felizes, e se tornaram indivíduos.