A cada ano que passa, as eternas produções de super-heróis que dominam a indústria do entretenimento tentam passar uma mensagem nova, positiva, sobre tolerância, diversidade, aceitação, e por aí vai. É um movimento que caminha devagarinho, em baby steps, porque parte do público consumidor não é exatamente aberto a esse tipo de lição - ou a qualquer mudança que divirja de seu material base. É nesse contexto que The Boys se sobressai, porque enquanto a enorme maioria das produções sussurra, a série do Prime Video grita em alto e bom som.
A adaptação da HQ de Garth Ennis faz isso desde seu primeiro episódio, tirando proveito da sua classificação indicativa não apenas para jorrar sangue, mas para poder lidar com seu público justamente pelo que ele é: adulto. E enquanto os dois primeiros anos já faziam isso através de retratos sem dó de temas como assédio e racismo, a mais nova temporada entra em território mais sutil e mais amplo, encarando a masculinidade tóxica de frente, focando neste conceito em todo e qualquer homem - seja vilão, mocinho, protagonista ou coadjuvante.
Para isso, a terceira temporada de The Boys discute relações de pai e filho, sejam elas absolutamente presentes na trama - como é o caso de Ryan e Billy ou Capitão Pátria e Soldier Boy -, ou menos visíveis, mas não por isso menos presentes - como é o caso de Hughie, Leitinho e Soldier Boy com seus respectivos patriarcas. A parte mais legal desse movimento para The Boys foi seu efeito coletivo: enquanto a primeira temporada focou na cultura de celebridade representada pela Vought, e a segunda teve Tempesta como símbolo da supremacia branca, o novo ano fala de algo que atinge cada um de nossos personagens, destacando o lado sombrio de seus heróis e o lado machucado de seus vilões.
Nesse cenário, é quase impressionante a habilidade de The Boys de capturar um assunto para desdobrá-lo através de toda sua temporada. Não é que a série do Prime Video não tenha uma jornada aventuresca e heroica que, claro, passa por reality shows, orgias e viagens à Rússia, mas ela chama atenção por nunca tirar o foco do assunto que quer apresentar e discutir com o público. Desde o primeiro pote de maionese que Hughie não consegue abrir no primeiro episódio, ou na tentação de tomar um Composto-V temporário, a produção está lá cutucando a fragilidade muito antes de apresentar seu principal vilão e símbolo da temática: Soldier Boy.
Herói histórico da Vought, que chega descongelado em 2022 com as mesmas noções da segunda guerra, o personagem de Jensen Ackles (em uma performance admirável que flutua perfeitamente entre o conquistador e o imbecil) não se vê tão descolado assim dos costumes na atualidade, e em um Estados Unidos onde o Capitão Pátria é símbolo de força e moral, Soldier Boy não é distante do modelo perfeito. Resgatado pela equipe de Butcher como a única esperança para aniquilar a crescente ameaça que o líder dos Sete representa, o soldado é um aliado tanto delicado quanto instável, que busca se vingar da sua própria equipe pelos eventos que levaram à sua captura e congelamento.
Sua aparição, aliada ao crescente foco em fake news e a completa desestabilização da Vought, fazem da terceira temporada a mais complexa que The Boys já passou. Na desunião de seus personagens - já que os Sete estão absolutamente fragmentados, Hughie e Butcher acompanham Soldier Boy, Frenchie e Kimiko pagam dívidas a uma vilã russa e Luz-Estrela e Leitinho seguem persistentes em manter uma batalha íntegra contra a Vought - The Boys passa por um desenvolvimento narrativo que não havia acontecido antes. A decisão de separar seus núcleos não passa sem tropeços e enrolações, mas é necessária para evoluir cada um de seus personagens com mais força, jogando todos quase ao fundo do poço para levantá-los na sua reta final. Nessa jornada tão sombria, são nos momentos em que os personagens se encontram (como no tão comentado “Herogasm”) que The Boys brilha de verdade.
É nesta temporada, também, que The Boys volta mais ao passado, não apenas para revelar Soldier Boy e os acontecimentos por trás de seu desaparecimento, como também para nos dar um relance na infância de Butcher e mostrar os acontecimentos traumáticos da vida de Leitinho da Mamãe. São movimentos orgânicos, que servem como base para cada um dos movimentos de seus personagens, e muito por isso também contribuem para o desenvolvimento da tese da masculinidade tóxica. Em um dos melhores exemplos, a Grace Mallory do passado confronta o tipo de Soldier Boy com uma verdade jogada na cara: “As mulheres estão querendo te agradar ou estão com medo, mas nenhuma delas gosta de você”.
É um discurso que aparece ainda duas vezes durante a temporada, no encontro entre Condessa Escarlate e Soldier Boy e Maeve e Capitão-Pátria, em uma abertura de jogo insistente e bonita de ver. The Boys pode ter o herogasm que quiser, mas seu completo desprezo por sutilezas é sempre mais admirável quando colocada em discurso, como também acontece em outro momento da temporada.
Enquanto Profundo tenta retornar ao posto de relevância nos Sete, Maeve é aprisionada por colaborar com Butcher e Black Noir parte para uma jornada misteriosa, é o arco de Trem-Bala que mais comove neste terceiro ano. Retratando a mais importante temática dos coadjuvantes dos Sete e impulsionando a impressionante capacidade que The Boys tem de entregar complexidade - e, por que não, redenção - aos seus vilões, Trem-Bala se reconecta com sua família e busca um diálogo com suas raízes, que o leva de frente a um dos piores supers já focados em The Boys, Falcão Azul. É no encontro deste pretenso herói com uma comunidade negra que a série também expõe a brutalidade policial e todos os seus chavões, em uma cena que não poderia ser mais gritante.
Em todo esse contexto, Capitão Pátria também encontra sua temporada mais ousada, porque na descrença nas instituições - algo, também, reiterado em uma ou outra fala hilária - o líder dos Sete encabeça a Vought com uma prepotência que leva a empresa a novos tempos. Começando a temporada assumindo sua arrogância na TV e vivendo na iminente ameaça de Soldier Boy, o personagem vivido por Antony Starr nunca esteve em posição tão vulnerável. O mais belo descontrole do Capitão é tão divertido de ver porque levá-lo ao seu limite é brincar com as habilidades de Starr, e o que o ator entrega na temporada não é nada menos que brilhante.
Foi um ano com movimentos gigantes, que vão desde a abertura completa e pública de Capitão Pátria à saída de Luz-Estrela dos Sete em uma batalha declarada contra a Vought, mas surpreendentemente o terceiro ano termina mais esperançoso que seu antecessor. Victoria Neuman, promessa de vilã do fim da segunda temporada, é guardada para o futuro, e The Boys afiou seu vilão em potencial, Ryan, de modo habilidoso e, claro, baseado em sua própria fragilidade. Sua relação com suas duas figuras paternas, Capitão Pátria e Butcher, é outro exemplo da surreal habilidade da série em criar personagens completos. Ver Butcher sendo o oposto do que o garoto precisava e Pátria tratando sua criação de modo muito mais apropriado é incômodo e admirável.
Gritar sobre os defeitos da sociedade é a parte mais importante de The Boys, mas é um alívio que isso sempre caminhe lado a lado a uma vontade de reparação que nunca abre mão da bondade. Enquanto a segunda temporada terminou de modo muito mais sombrio - na revelação de nossa única esperança política como vilã - o terceiro ano se encerra de modo muito mais bonito, principalmente com os atos de Leitinho da Mamãe e Hughie no confronto final. Unindo seus personagens novamente em sua batalha mais harmoniosa até hoje, The Boys prepara um quarto ano que pode ser bem complicado para Billy Butcher, mas que tem seus garotos mais desenvolvidos e fortes do que nunca.