Além de The Good Doctor, há uma outra produção com um protagonista autista no ar, que também passou pelo mesmo processo de compreensão acerca de como seria para ele ter um relacionamento. Atypical, da Netflix, fez um lindo trabalho ao fazer com que o envolvimento de Sam e Paige partisse da premissa de que o protagonista precisa ter experiências com uma personagem, para depois descobrir que ama uma outra pessoa do elenco fixo. Essa história é velha, mas Atypical começou nela e parou também. Paige, que se esforcou muito para compreender e ser paciente com a peculiaridade de Sam, foi recompensada com a permanência e não com a troca por um rostinho padrão qualquer.
Em The Good Doctor as coisas foram diferentes e em grande parte, a condução capenga do triângulo entre Shaun (Freddie Highmore), Carly (Jasika Nicole) e Lea (Paige Spara) foi muito responsável pela sensação de frustração causada por essa temporada. Vamos chegar lá na estapafúrdia reviravolta da season finale. Esse triângulo foi arrastado pelos episódios, primeiro nos fazendo acreditar no que era mais correto: aquilo não era um triângulo e sim um reajuste de relacionamentos. Apenas para chegarmos até os últimos episódios e percerbermos que Carly - aquela que realmente investiu tudo em Shaun - era só alguém no meio do caminho. No final das contas, ele trocou a pessoa real por uma história vazia com um rostinho padrão.
Shaun experimentou todo o amadurecimento e autoconhecimento com Carly. Foram dezenas de boas e sensíveis sequências com ela. A relação com Lea, para qualquer pessoa com visão, encontrou seu ponto de conforto na amizade. Se houve um brilho entre ela e Shaun, ele ficou lá na segunda temporada e mesmo assim não era tão forte. A toxicidade dos dois como interesse romântico ficou clara até no impulso criativo dos roteiristas, na sequência em que Lea é preconceituosa e depois Shaun quase destroi o carro dela. Estava evidente que aquilo não era para ser, mas a mente de David Shore funciona na velocidade do final dos anos 90 e início dos 2000. Ele prefere explorar a “mentira” e providencia uma quase morte para fazer Lea “abrir os olhos”. Os de Carly já estavam abertos e ela não precisou sofrer nenhuma pressão para isso.
Jasika Nicole (que conhecemos tão bem como a maravilhosa Astrid, de Fringe) fez um trabalho espetacular e conseguiu uma química com Highmore que salvou o ator da atuação robotizada que ele desenvolveu. Com ela, o astro conseguiu ser menos mecânico. Não é à toa que sua interpretação não tem sido festejada como todos poderiam imaginar antes do programa começar. Alguém atuando como um robô dos anos 80 consegue se aproximar muito da proposta criativa de Highmore, que tem perdido as nuances do personagem, em grande parte porque Norman Bates o assombra a cada frame, principalmente nas cenas onde o personagem se descontrola.
WTFinale
(Atenção: muitos spoilers abaixo! Não continue se não tiver assistido)
Alguns defensores de The Good Doctor afirmam que gostam da série justamente porque ela não se parece com Grey's Anatomy. A terceira temporada deve ter sido um problema para eles então, já que TGD nunca foi tão Grey's quanto agora. O investimento dos roteiros nos casos da semana foi quase sempre trágico, as tentativas de emocionar em blocos finais ao som de hits como os de Ed Sheeran também foram recorrentes e chegamos ao extremo de providenciar mortes sem nenhum significado como forma de chocar e impressionar o público. Começando pela morte da mãe de Claire (Antonia Thomas), que não teve nenhuma função a não ser colocar a personagem numa posição miserável e reiterar isso tirando da vida dela três pessoas com quem ela se importava.
É curioso que tenhamos falado sobre como a série construiu bem a relação entre Shaun e Carly apenas para miná-la com argumentos sem nenhuma coesão, porque isso aconteceu também com Neil (Nicholas Gonzalez) e Lim (Christina Chang). Depois de três anos com uma história sequencial, Claire surgiu na equação aparentemente como um elemento que agiria numa dinâmica de admiração e apoio profissional. Entretanto, lá estavam os episódios que começavam a construção de um interesse romântico, sem nenhuma intenção de se concretizar, uma vez que o tal amor só foi usado como desculpa para dar a Claire um momento dramático no leito de morte de Neil. E um momento que deveria ser de Lim, porque Claire só chegou no final do segundo tempo.
A morte do personagem foi, sem dúvida, uma surpresa, sobretudo porque não serve ao roteiro de forma alguma, a não ser para o oportunismo narrativo. Sabemos que personagens morriam sem necessidade o tempo todo em Grey's Anatomy, mas nem por isso a série era descriteriosamente festejada. Algumas daquelas mortes eram tão claramente superficiais que fizeram uma boa parte do público abandonar o barco. Nicholas Gonzalez chegou a dizer que a morte de Neil foi uma decisão criativa, o que só torna a coisa toda mais estarrecedora, porque algumas das despedidas em Grey's Anatomy foram forçadas pelos atores que pediram suas demissões. Neil morrer depois de um “não-romance” com Claire só atrapalha a própria personagem, Lim e todo o arco de crescimento pelo qual ele estava passando. Nunca será possível entender o motivo pelo qual o promissor plot de sua irmã com síndrome de down, por exemplo, foi abandonado. Dito isso, será para sempre imperdoável que nem uma ceninha sequer com Shaun ele tenha tido.
Todo o drama de Morgan (Fiona Gubelmann) também não funcionou. O Dr. Glassman (Richard Schff) virou uma adorno e depois de tantas decisões ruins, só podemos esperar que a quarta temporada (que deve ser adiada por conta da pandemia) reajuste as peças antes que o jogo seja completamente perdido. The Good Doctor provou, mais do que nunca, que não sabe o que está fazendo. O que não deixa de ser uma ironia, já que David Shore tem um fetiche inesgotável por protagonistas que sabem tudo.