“A atuação mais sutil é feita por pessoas comuns, seja ao fingir um sentimento que não têm, ou ao esconder algo que de fato aconteceu”. Em engenharia reversa, a frase de Marlon Brando serve para exaltar o subtexto na interpretação dramática. Pois é precisamente o entendimento disso que faz o trabalho da dupla Pedro Pascal (The Mandalorian) e Bella Ramsey (Game of Thrones) tão essencial para que a primeira temporada de The Last of Us materialize uma boa série de TV, apesar de claros problemas estruturais.
Trama nascida nos videogames e que chega à telinha neste ano, adaptada pela HBO, The Last of Us sempre teve a potência do não dito como um dos fundamentos de sua narrativa. Para o idealizador Neil Druckmann (Uncharted: Fora do Mapa), a escolha de conjugar as gramáticas dos jogos de ação e das tramas pós-apocalípticas de zumbis foi mera estratégia para vender uma história sobre conexões humanas em contextos de crise, examinando o custo da sobrevivência humana.
Porque, em The Last of Us, esse custo muitas vezes é a verdade, e o que fazemos com ela quando nos sentimos ameaçados. Estruturado como “road movie” jogável, o título da Naughty Dog coloca o jogador no comando do violento Joel Miller, um homem traumatizado pela perda de sua filha que é incumbido de escoltar uma garota em uma viagem pelos Estados Unidos. A menina é Ellie Williams, adolescente arredia e desbocada que pode ser a chave para encerrar uma pandemia que devasta a Terra há anos, desde que uma evolução do fungo Cordyceps passou a transformar pessoas em monstros.
Desde o início, a relação entre ambos é moldada por segredos, mágoas e desconfianças. Mas, gradativamente, traumas compartilhados em um ambiente hostil os levam a derrubar esses muros, expondo quem são e os aproximando. Só que esse ciclo é eventualmente quebrado, quando um deles conclui que preservar essa honestidade pode separá-los. Ao menos nos consoles e PCs, é uma progressão que, sutilmente, se revela épica. Delicada, a relação entre Joel e Ellie é de meias-palavras, olhares, sentimentos prematuros que surgem e se apresentam de maneiras conturbadas e humanas. No jogo, é possível sentir cada avanço na cumplicidade de ambos; processo gradativo que não flui tão bem na série de TV.
Indecisa entre o serializado e a narrativa longa, The Last of Us acaba fragmentando demais a aproximação de seus protagonistas. Para remediar a pressa, emprega certo didatismo, pesando a mão em alívios cômicos e deixando rendidos diálogos transpostos quase que literalmente dos jogos — onde encontram mais respiro. Conforme a narrativa avança e passa a referenciar eventos passados como bagagem vasta colhida em uma longa jornada, incorre a ocasional sensação de forçação de barra. Claro que um salto temporal de três meses entre os episódios “Resistir e Sobreviver” e “Parentesco” não ajudam a suavizar essa sensação. Mas o problema é sentido com mais força no season finale “Procure a Luz”, que oscila entre o protocolar e o emocionante, quando deveria ser apenas apoteótico.
A redenção constante, em todos esses momentos, reza no brilhante trabalho da diretora de elenco Victoria Thomas ao escalar Pascal e Ramsey. Carismáticos e donos de química ímpar, eles compensam a falta de embasamento estrutural para o texto melodramático de Druckmann com imensa fé cênica e entrega passional a Joel e Ellie. Há nuance e profundidade em cada entrega de diálogo da dupla, explicitando um trabalho árduo e conjunto de construção de personagens. Quando está confinado apenas às atuações dos dois, The Last of Us toca o sublime; transcende o jogo ao dispensar a ação e admitir-se, acima de tudo e de forma que um game jamais poderia, um estudo de personagem contemplativo. É uma pena, inclusive, que esse aspecto não seja mais intenso.
Capaz de transitar confortavelmente entre o taciturno, o ameaçador, o caloroso e até o pueril, Pedro Pascal se transfigura no papel de um homem em busca inconsciente de uma razão para viver — aproveitando ao máximo o personagem mais denso que já defendeu na carreira. Já a prodigiosa Bella Ramsey encarna com vulnerabilidade e bravura uma Ellie ainda mais violenta, mas tão ou mais cativante ainda que a do game; seus olhos largos e escuros brilhando a cada descoberta e gritando a dor de cada golpe desferido por um mundo duro, mas ainda assim admirável.
Igual, mas diferente
Um jogo altamente cinematográfico, The Last of Us nasceu para ser levado a outras mídias com as menores mudanças narrativas possíveis, então é também louvável o esforço de Druckmann e do co-criador da série Craig Mazin (Chernobyl) para injetar novidades na trama. O tão falado non sequitur proposto em “Por Muito, Muito Tempo”, estrelado por Nick Offerman (Parks & Recreation) e Murray Bartlett (The White Lotus) é excelente exemplo: oferece expansão de universo, easter eggs e serve de prenúncio e reforço ao desfecho da temporada. Ao mesmo tempo, muda radicalmente uma passagem pouco explorada do game. E em inéditos momentos sensíveis, como os protagonizados por Sam (Keivonn Woodard) e Henry (Lamar Johnson) em “Resistir e Sobreviver”, ou por Ellie e Riley (Storm Reid) em “O Que Deixamos Para Trás”, essas adições brilham mais intensamente.
À parte de mais mudanças, no geral positivas, motivadas por síntese narrativa — com exceção do novo meio de transmissão do Cordyceps, ou de certos aspectos da morte de Tess (Anna Torv), que acabam parecendo desnecessários — a série aposta na máxima do “time que está ganhando”. A trilha sonora original do argentino Gustavo Santaolalla enche os ouvidos não só na bela (e um pouco nojenta) sequência de abertura, como em momentos de grande emoção, e a predileção de Druckmann por músicas dos anos 1980 e 1990 se mantém na TV com usos brilhantes de faixas de Depeche Mode e Pearl Jam. A fotografia luxuosa, assinada por Ksenia Sereda, Eben Bolter, Christine A. Maier e Nadim Carlsen, junto à direção de arte impressionante assinada por seis profissionais diferentes, também garantem à produção todo o ar costumeiro da grife HBO.
Falando em acertos, o intercâmbio de atores do jogo que ganham novos papéis na série, como a Ellie original, Ashley Johnson (The Legend of Vox Machina), ou o Joel original, Troy Baker (Batman: Arkham Origins) — ou até a escolha de ter Merle Dandridge (Greenleaf), a Marlene original, vivendo a personagem também em live-action — é dos grandes. Mais do que um aceno aos gamers, essa é uma ótima oportunidade para dar destaque a atores que nem sempre dão as caras em grandes produções do mainstream, mas nem por isso têm menos talento para exibir.
Dispensando o papo cansado de “melhor adaptação de games”, fato é que The Last of Us é boa mesmo quando derrapa, graças aos dois astros igualmente talentosos, em polos opostos da carreira, que a conduzem. O bom das falhas é que, com elas, a série indica um segundo ano com bom campo para evolução — especialmente em questões de ritmo e coesão narrativa (o tom quase documental das aberturas sisudas dos episódios foi totalmente abandonado. O que rolou ali?). E a segurança do lastro firme oferecido por Pascal e Ramsey, bem como o caráter subversivo da história da continuação, podem servir até para convencer quem ainda não viu na dupla luz o bastante para ignorar uma certa escuridão.