A Netflix passa por uma crise após a Disney anunciar que vai lançar seu próprio streaming e, consequentemente, migrar suas franquias e produções inéditas para lá. O término fez a emissora questionar o seu futuro, deixando de produzir marcas de empresas alheias, como Demolidor, para adquirir os direitos de outras propriedades e criar suas próprias adaptações - o que dá a oportunidade de ditar novas tendências e explorar materiais que fogem da Marvel e DC. Enquanto as obras de Mark Millar não ganham vida na plataforma, The Umbrella Academy chega para dar um gostinho de como as coisas devem ser daqui para frente.
Baseada no quadrinho de Gerard Way (ex-vocalista do My Chemical Romance) e do artista brasileiro Gabriel Bá (Dois Irmãos) na Dark Horse Comics, a trama acompanha uma família de heróis menos grandiosa do que parece. Após fazerem fama como vigilantes na infância, os sete crescem e se tornam adultos problemáticos e distantes entre si. O grupo é forçado a se reencontrar quando o Sir Reginald Hargreeves (Colm Feore), o bilionário pai adotivo das crianças peculiares, morre de forma suspeita, levando-os a questionar as causas.
Vanya (Ellen Page), a Número Sete, ganha maior destaque na introdução por ser a excluída do grupo, já que não tem nenhum superpoder e sempre sofreu por isso - tanto pelos irmãos, quanto pelo pai, o que só se agravou quando decidiu escrever um livro expondo todas as picuinhas da casa. Ela guia o público e apresenta esse universo em que heróis são comuns aos habitantes, a matriarca da família é um robô e o mordomo, um chimpanzé.
Umbrella Academy caminha rápido, introduzindo uma grande variedade de subtramas ao espectador: a falta de poderes de Vanya, o mistério da morte do pai, o distanciamento entre os irmãos, diversos romances e a iminência do fim dos tempos avisada pelo Número Cinco (Aidan Gallagher) - que por sua vez é perseguido por uma dupla de assassinos que viajam no tempo e servem uma espécie de corporação. Parece coisa demais para absorver logo de cara, mas fica claro que o seriado sabe como trabalhar o seu ritmo. Há um charme de ficção científica da década de 1950, era que Way já declarou como influência em muitos de seus trabalhos, mas o que realmente faz a quantidade de absurdos funcionar é a ótima escrita. Os roteiros ordenam todas as tramas por prioridade e, surpreendentemente, as resolve em sequência natural e com conclusões satisfatórias. É uma série verdadeiramente carregada, mas que caminha na velocidade que precisa.
A velocidade, por fim, ajuda a ressaltar o quão excêntrica toda essa história é. Isso fica ainda mais visível nos personagens, que passam a ver seus poderes da juventude como maldições ao longo da vida adulta: Klaus (Robert Sheehan), que pode comunicar-se com os mortos, usa drogas para silenciar as vozes do além; Allison (Emmy Raver-Lampman) destrói a própria vida ao abusar do seu poder de manipulação mental; o gigante Luther (Tom Hopper) não consegue se conectar com ninguém além dos irmãos, e se isola na Lua após toda a sua família debandar do lar. O seriado apresenta esses casos para ressaltar a falta de domínio de habilidades e o pouco autoconhecimento de cada um, mas também deixa claro a todo momento que todos esses defeitos e a relação familiar disfuncional são frutos da criação de um pai repressor, frio e autoritário. O ponto central do programa é justamente explorar como a busca pelo perfeccionismo na infância leva a adultos com mentalidade tóxica de competição e autodepreciação.
O que segura a série de tornar-se um verdadeiro dramalhão é justamente o contraste entre essa temática profunda e a apresentação exagerada, o que cria uma personalidade única. A trama reconhece toda a tragédia que os personagens passaram, mas também garante que não há tanto sentido em se remoer pelo passado, e sim buscar reconciliação no presente para evitar repetir os mesmos erros no futuro. Dessa forma o programa traz uma visão de "otimismo irônico" - que funciona muito bem pela confiança que tem para entregar absurdos e momentos emotivos em partes iguais.
Por sorte, essa confiança também influencia bastante a parte visual. Enquanto a fotografia nunca fica à altura do resto, a estética é conduzida com cortes rápidos, cores brilhantes e um toque de ficção científica bizarra para os poderes, vilões e viagens no tempo. A trilha sonora traduz bastante dessa energia frenética, acompanhando cenas de ação com Queen, The Doors e mais. Essa é de longe a parte menos marcante do seriado, já que poderia ser muito mais experimental e estranha do que o resultado final, mas ainda assim completa o pacote de forma adequada e complementa momentos divertidos, como o tiroteio entre o Número Cinco (Aidan Gallagher) e os assassinos Hazel (Cameron Britton) e Cha-Cha (Mary J. Blige) em uma loja de roupas ao som de "Don't Stop Me Now".
Umbrella Academy soa como a mistura improvável da escrita enlouquecida de Douglas Adams, um toque da excentricidade de Wes Anderson e a direção frenética de Ryan Murphy em uma história sobre pessoas tão peculiares quanto disfuncionais. A produção foge de clichês do gênero e do tom sombrio das demais produções heróicas da Netflix, entregando algo divertido mas também emocionante. Ainda que deixe um gancho abrupto, a série conquista pela experimentação e personalidade - e deixa uma boa sensação positiva para o futuro dos super-heróis e das adaptações de HQ na plataforma de streaming.