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Séries e TV

Crítica

Série Treta perde o ritmo de uma boa briga

Aposta da Netflix é como uma picuinha de redes sociais: diverte, mas é longa demais

10.04.2023, às 12H17.

Em 2014, quando o cineasta Damían Szifron lançou Relatos Selvagens, todo o público que encerrava a exibição do filme saía daquela experiência entendendo perfeitamente a origem da fúria e o caminho da racionalidade até a simples barbárie. Na vida contemporânea os “dias de fúria” estão cada vez mais recorrentes, com gente comum perdendo a cabeça sem motivações justas e fazendo da reatividade a única saída possível. De forma muito inteligente, o filme de Damían contava histórias curtas, porque a fúria, enfim, se expressa melhor no imediatismo. 

Encontrar certo humor dentro dessa estrutura não é difícil. Embora a situação seja sempre limítrofe, assistir a uma briga quando você está fora dela é a receita perfeita para extrair graça do infortúnio alheio. O criador de Treta, Lee Sung Jin, enquadrou o conceito da série no gênero da comédia e, em sua defesa, os roteiros passam os primeiros episódios investindo na jocosidade involuntária dos protagonistas. 

Treta começa sua história mostrando uma briga de trânsito. Danny (Steven Yeun) e Amy (Ali Wong) se esbarram numa rodovia e após um desentendimento, passam a perseguir um ao outro com o objetivo de vingança. Essa mesma premissa já foi usada recentemente no filme Fúria Incontrolável, com Russel Crowe, que usa sua ira fatal para arruinar sua vítima durante as horas seguintes ao conflito. Já na série da Netflix, esse argumento precisa se estender por 10 episódios, fragilizando a base da ideia. Depois de episódios iniciais fortes, a “treta” vira uma briga entre bêbados... e entedia. 

Comprando briga

Os três primeiros episódios da temporada ditam um ritmo bastante condizente com a proposta de uma aventura onde partes polarizadas se odeiam. Amy e Danny são de realidades diferentes. Ele é muito pobre, fracassado nos negócios e sempre precisando recorrer a métodos nada convencionais para conseguir clientes. Já Amy cuida das aparências em meio aos ricos, mas é amarga e vive um casamento apático e infeliz. Quando os dois começam a se provocar -  numa escala que dá aos personagens uma nova “razão de viver” - a série revela seu carisma potencial. Tanto Steven quanto Ali constroem protagonistas impecáveis... mas que nem sempre tem a história a favor. 

Logo que a temporada chega na sua metade, começa a luta dos roteiros contra o tempo. A dinâmica de agilidade típica de uma trama que se apoia em fúria vai sendo deixada de lado em nome da necessidade de ramificar os acontecimentos o quanto for necessário para preencher os episódios. Por causa disso, Treta envereda por caminhos complicados, que vão exagerando as coisas para torná-las mais rentáveis, com mais tempo de resolução, deixando em segundo plano a dinâmica de perseguição entre os dois inimigos. São 10 episódios, uma história simples e uma tensão para construir. 

Logo que os roteiristas percebem onde se meteram, Amy e Danny começam a repetir padrões de comportamento que não são nada surpreendentes. Até o ponto em que a vingança era apenas riscar o carro ou fazer xixi no chão do banheiro, a força de Treta enquanto comédia estava garantida. Contudo, a necessidade de esticar a trama era tão visível, que pouco a pouco tudo vai precisando ficar maior, maior e maior... e quanto você se dá conta, a série já perdeu seu fator humano essencial: simplicidade. 

A ideia de vender-se como uma comédia continua se esgotando pelo caminho... Entre o episódio 5 e o episódio 10, horas são perdidas com a obrigação tola dos roteiristas de justificarem os protagonistas. Nem o já tradicional episódio de  flashback com a infância dos protagonistas deixa de fazer sua aparição. O sofrimento de Amy em contraste com o de Danny se torna parte central. Steven chora, chora, grita, baba.. parece estar em tudo, menos em uma série de comédia. É uma interpretação esplêndida, dedicadíssima; mas muitas vezes dois tons acima do necessário. 

Quando uma ideia original surge no mercado, seus criadores são rechaçados assim que ela se perde em meio a afetações. Treta foi esvaziando sua grande ideia assim que precisou transformar um bilhete em uma enciclopédia. São longos períodos em que nada acontece e o texto – apesar de inspirado em alguns momentos – falha em preencher os necessários hiatos mentais entre as ações dos roteiristas. Chegamos em um ponto em que a vingança pouco importa, porque todos os coadjuvantes têm suas próprias agendas. 

Quando a história mostra o tempo avançando, a briga do começo já parece sem sentido. Novas brigas surgem, novos rivais surgem, mas chegamos ao finale com muito menos impacto do que seria adequado para um encerramento. Treta chega ao seu episódio final com uma ideia estapafúrdia e totalmente anticlimática, que infelizmente afeta seu elenco corretíssimo e suas decisões estéticas inspiradas (como a titulação esperta em cada episódio e a ótima trilha sonora). 

O mais impressionante é a possibilidade de uma segunda temporada. Será mesmo que essa treta tem potencial para continuar sendo interessante - ou vai acontecer com ela o que acontece com autores de tweets polêmicos, que depois de aproveitarem o curto período de orgulho causado pela viralização das próprias palavras, vão lá e silenciam notificações? O melhor é deixar os malucos praguejando e seguir com seu dia. Chega uma hora que qualquer treta cansa. 

Nota do Crítico
Bom