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Séries e TV

Crítica

Nova adaptação de Um Dia é burocrática, mas tem beleza

Nova adaptação do livro de David Nicholls não tem coragem de fazer grandes mudanças, mas é uma das produções mais bem cuidadas da plataforma.

10.02.2024, às 10H46.
Atualizada em 10.02.2024, ÀS 11H09

Quando David Nicholls lançou o romance Um Dia, em 2010, era de se esperar que seu sucesso literário fosse torná-lo um candidato natural a algum tipo de adaptação. A história de Emma e Dexter era um chamariz poderoso de um público ávido por histórias que continuassem a explorar o mercado até então aquecido pela saga Crepúsculo: enredos em que um casal luta contra algum dificultador para que a relação deles progrida naturalmente.

O que atrapalha o casal do livro de Nicholls é o tempo: logo depois que se conhecem em 1988, os dois personagens vão sendo empurrados pelas circunstâncias, e a cada novo ano, no mesmo dia 15 de julho, o leitor vai descobrir o que aconteceu na vida deles até ali. O livro não apela para o vampirismo, mas mantém em pauta parte da estrutura desse momento da literatura. Emma começa no livro como uma jovem insegura, e Dexter, como o homem com a aparência de um príncipe que esconde uma personalidade sombria. Na ocasião do lançamento do romance, Crepúsculo já tinha sido lançado e, dois anos depois que Um Dia chegou às livrarias, 50 Tons de Cinza viria para reforçar o método.

No filme estrelado por Anne Hathaway e Jim Sturgess, esse método é ainda mais reforçado, com uma adaptação que ainda que venha das mãos do próprio Nicholls, higieniza a personagem de Hathaway para que ela pareça ainda mais “certinha”. No livro, Emma e Dexter fumam sem parar e ela chega a ter um caso com um homem casado. No filme de 2011, tudo isso é suprimido para que “a história de amor segundo a cartilha de hits da indústria” não seja arranhada.

A chegada da adaptação televisiva ao streaming oferecia aos fãs do casal a possibilidade de que a série encontrasse um meio do caminho: que nem fosse tão higienizada quanto o filme e nem tão direta quanto o livro. Como cada episódio corresponderia a um dos anos, haveria bastante tempo para explorar mais dos personagens, tomando decisões que estivessem em coerência com o olhar de hoje e não com o olhar de mais de 10 anos atrás. Então, depois de terminar a temporada, é justo dizer que a adaptação da TV alcançou esse objetivo.

Quinzes de Julho

Os acertos começam com a escalação de Ambika Mod (da série This is Going to Hurt, da BCC) para viver Emma. Foi uma escalação calculada para derrubar a imagem que a personagem construiu por conta da angelical aparência de Anne Hathaway. Ambika dá sua voz para a protagonista, e isso amplifica os detalhes perdidos que também foram suprimidos pela criação de Anne. A atriz ainda consegue demonstrar vulnerabilidade, mas constrói a personagem em torno do que a diferencia da construída para o filme.

Como era de se esperar, o que David Nicholls (agora na produção executiva) decidiu manter intocável foi o que Dexter representa enquanto instituição dessa trama. Leo Woodall (de The White Lotus) foi escolhido a dedo. Sua figura evoca uma imagem de "realeza” ainda mais que a de Jim Sturgess, e paira sobre essa escolha uma vontade implícita de – assim como acontece no livro e no filme – manter o papel do personagem “heroico sem ser heroico” na ideia geral da trama. Ao mudarem tanto a imagem pública de Emma e não a dele, os produtores estabelecem uma estratégia ambígua: a de não aborrecer quem se apegou a um Dexter “principesco”, já que, no fundo, ter essa aparência e ser um pouco bad boy só o torna mais irresistível.

De fato, é até coerente que numa história escrita por um homem, o personagem masculino fosse ser aquele que tem a jornada de crescimento como pessoa. Um Dia é um livro sobre Dexter, sobre ele tentando se ajustar no mundo. Mas, curiosamente, quando o romance passou pelo filtro do mercado, ele passou a soar como se a ótica principal fosse a de Emma; uma vez que em todos os outros títulos que usam da estrutura de “casal primeiramente impossível”, a voz soberana é a da mulher; e o “príncipe bad boy” permanece nas sombras (pelo menos até “aquilo que faz com que ele seja problemático” seja revelado).

Em 14 episódios, a minissérie toma poucas liberdades de adaptação no que diz respeito à história, e funciona burocraticamente na maioria do tempo. Há um capítulo no livro de Nicholls que conseguiu o feito de ser rejeitado nas duas adaptações e para cobrir o buraco deixado, uma mudança na contagem dos anos pode ter deixado os fãs mais puristas um pouco estressados. Além disso, alguns acontecimentos são adiados ou adiantados em comparação com o romance. Contudo, em essência, está tudo ali.

Embora a minissérie tenha sido mais comprometida em não enfeitar tanto a história do casal, estamos falando da Netflix, e além de doses a mais de sexo, existe algo de menos adulto na forma como a estética da série foi concebida. No filme, ainda que mais jovens, Anne e Jim parecem mais adultos do que Ambika e Leo, que permanecem com um frescor juvenil até o final. Talvez essa atmosfera, enfim, também tenha contribuído para que a minissérie tenha menos alma que o filme de 2011.

Apesar de todos os fatores industriais do longa, há nele uma catarse e uma emoção que faltam à minissérie. Esse Um Dia da Netflix é melhor adaptado e produzido; é conduzido com mais verdade, tem uma trilha inesquecível (com Blur e Radiohead como grandes exemplos), mas não tem o mesmo carisma. Assim como nas relações, nunca é possível rastrear o que faz com que duas pessoas se apaixonem uma pela outra; também é difícil descobrir como se sequestra o poder do encanto.

Talvez a minissérie Um Dia não te emocione tanto... Mas, todos os seus quinzes de julho constroem um ótimo exemplo do que é boa TV.

Nota do Crítico
Ótimo