Miguel Bernardeau em Zorro (Reprodução)

Séries e TV

Crítica

Zorro erra tentando complicar a moralidade de um herói fundado no escapismo

Série nunca vai satisfazer todos os lados de sua disputa histórica - e nem deveria tentar

29.01.2024, às 14H52.
Atualizada em 12.03.2024, ÀS 23H53

Quando dizemos que a ficção é um instrumento poderoso, talvez devamos ser mais específicos: eu diria que ela é menos martelo e mais canivete suíço - menos instrumento de impacto bruto e mais ferramenta de utilidade multidisciplinar. Quando se trata de abordar problemáticas histórico-sociais, por exemplo, algumas histórias se prestam a destrinchá-las em toda a sua complexidade, mergulhando em todas as suas moralidades ambíguas. Outras histórias, enquanto isso, estão aqui para prover (mesmo que por procuração) uma correção rápida e satisfatória de injustiças passadas que reverberam na atualidade, uma fantasia de retribuição que cumpre função quase fisiológica na linha do tempo da humanidade.

Zorro sempre foi o segundo tipo de história. Criado como herói de aventura pulp e apropriado por contadores de histórias latinos como galã de telenovela (desvelando, no caminho, o quanto esses dois arquétipos se parecem), o justiceiro mascarado defendia nativos e camponeses contra as malévolas autoridades do Pueblo de Los Angeles, durante e após o período de colonização espanhola. Seja com o rosto de Guy Williams, de Antonio Banderas ou de Christian Meier, o Zorro sempre foi astro de uma disputa bem delineada de bem contra o mal, responsável por entregar ao espectador a catarse anticolonialista e antiautoritária que se mostrava tragicamente ausente dos registros históricos oficiais.

A nova série do personagem no Prime Video, no entanto, insiste em tentar transformá-lo em outra coisa. O roteirista Carlos Portela, talvez encorajado pela mistura bem-sucedida de novelinha e drama de prestígio com relevância social que fez em As Telefonistas, mete o seu Don Diego de la Vega (Miguel Bernardeau, o Guzmán de Elite) no meio de uma Califórnia na qual as várias arestas do poder e da comunidade se digladiam pela supremacia de suas visões falhas de futuro e justiça. Sim, o Governador (Rodolfo Sancho) ainda é um vilão com V maiúsculo, inflexível em seu racismo e corrupção, mas a série também coloca Zorro contra grupos que buscam separar a Califórnia do México, ou juntá-la aos EUA, ou ainda devolvê-la aos nativo-americanos. 

Imigrantes chineses e russos entram na equação, com interesses que por vezes conflitam e por vezes se alinham aos de Zorro e do governo local. Don Diego, enquanto isso, só aceita se tornar o vigilante mascarado para descobrir quem matou seu pai e se vingar (violentamente) deles, mas condena o impulso da nativa Nah-Lin (Dalia Xiuhcoatl) de realizar uma revanche igualmente sangrenta e ainda mais ricamente justificada. São dilemas morais e sistemas sociais complicadíssimos, que acabam por esvaziar o papel do Zorro como símbolo de justiça - afinal, justiça para quem? Diego insiste que ele representa justiça para todo mundo”, mas o que é justo para todo mundo? Zorro é um agente da lei? E quando a lei falha, ele decide por si mesmo quando a violência é justificada ou não?

Veja bem: uma vez que você abre a caixa de Pandora em que (quase) ninguém é realmente vilão ou herói, é difícil fechá-la. Talvez haja uma versão de Zorro por aí, no éter das histórias não contadas, que aponte a hipocrisia e as consequências do vigilantismo dentro de um universo fiel ao toma-lá-dá-cá da nossa realidade histórico-política. O Zorro de Portela reluta em se comprometer com esses pontos, no entanto, até porque quer manter o charme mercadológico do Don Diego galã de novela, e por isso não pode transformá-lo em um fascistoide violento ou mesmo questionar a nobreza absoluta de seu caráter. O que o roteirista consegue alcançar, ao invés disso, é um meio-termo insatisfatório - ele não nos dá a catarse do Zorro justiceiro da classe oprimida, nem o prazer pungente de uma narrativa política destemidamente fluente em suas complexidades.

E é uma pena, porque Zorro tem uma miríade de virtudes estéticas trabalhando ao seu favor. O diretor Javier Quintas, nome forte de várias superproduções recentes da TV espanhola (La Casa de Papel, Sky Rojo, Toy Boy), não só se mostra hábil em evidenciar na tela o tamanho do seu orçamento, desfilando figurinos suntuosos e uma ambientação de época convincente, como também encontra - com a ajuda dos diretores de fotografia Miguel Leal e Johnny Yebra - uma linguagem visual refrescantemente disposta a abraçar o artificial. Enquanto Portela quer fazer do seu Zorro o astro de um épico “sombrio e realista” palatável para a geração Game of Thrones, Quintas e seus colaboradores o colocam em uma Los Angeles de horizontes pintados em papelão e becos iluminados em neon rosa.

Quando chega a hora da ação, especialmente da metade da primeira temporada adiante - talvez a necessidade de conquistar aquela “geração GoT” tenha falado mais alto nos primeiros episódios -, Zorro escolhe filmar o seu herói como uma criatura das sombras à la Batman, adicionando efeitos sonoros exagerados para sinalizar suas entradas e saídas de cena abruptas, quase cartunescas. E a sensibilidade folhetinesca também fala mais alto na hora de lidar com o romance entre Don Diego e Lolita (Renata Notni), que começa com confrontos tipicamente espirituosos e termina em um arco trágico de ressentimento e separação resignada. Bernardeau e Notni nunca estão melhores do que quando encenando as idas e vindas desse caso de amor condenado.

São, enfim, escolhas audaciosas que acabam se perdendo em meio a ambições narrativas não realizadas. Nada é mais simbólico dessa frustração do que o episódio “El Mito” (1x07), no qual Zorro precisa lidar com os relatos exagerados de seus feitos heróicos que andam saindo no jornal local, assinados por um autor anônimo. Quintas se esbalda na oportunidade de encenar esses relatos, escolhendo diferenciá-los das cenas ambientadas no “mundo real” ao utilizar a fotografia em preto-e-branco (quebrada por respingos de amarelo e vermelho, como em Sin City) e o aspect ratio acadêmico (aquele em que os cantos da tela não são usados), além de dirigir seus atores para entregar os diálogos melodramáticos da forma mais rígida possível.

O resultado, bom… são as cenas mais divertidas e estimulantes de toda a primeira temporada. É evidente que Portela escreveu esse subplot como meio-homenagem, meio-zombaria das versões novelescas passadas do personagem, mas no fim das contas o efeito é deixar o espectador com vontade de ver mais daquele Zorro, um velho amigo que sempre serviu bem ao seu propósito de fantasia catártica de justiça histórica - o instrumento certo para a tarefa certa. O Zorro “de verdade” que a série nos mostra, enquanto isso, parece condenado à inadequação de um martelo batendo em um parafuso.

Nota do Crítico
Regular