Com a vitória nas categorias de Melhor Série, Ator e Atriz no Globo de Ouro 2024, que aconteceu no último domingo (7), O Urso se tornou a primeira produção em mais de 15 anos a vencer todos os principais prêmios na categoria de comédia – a última produção a realizar o feito foi 30 Rock, em 2009. No entanto, embora tenha saído como uma das grandes vencedoras da noite, a série estrelada por Jeremy Allen White teve seus prêmios questionados por parte do público. Não por qualidade, mas simplesmente por não ser reconhecida como uma série de comédia.
Os debates devem continuar na próxima semana, durante a entrega do Emmy Awards 2023 – cerimônia adiada por mais de quatro meses por conta das greves de Hollywood do último ano. Na cerimônia, O Urso, novamente, compete como comédia, pois segundo a Academia de Artes e Ciências Televisivas (ATAS), órgão responsável pela entrega dos Emmy Awards, a série pertence ao gênero. Na mesma categoria, competem títulos com narrativas cômicas mais convencionais (Ted Lasso, Only Murders in the Building, Abbott Elementary e Wandinha), produções arriscadas porém não menos engraçadas (Barry e Jury Duty), e uma série de uma hora sobre uma comediante enfrentando questões pessoais (The Marvelous Mrs. Maisel). Mas como uma série focada que retrata o estado dos personagens e suas lutas diárias com questões mentais sérias, como ansiedade, burnout e suicídio, editada de forma muito mais crua e com um tom mais dramático vai concorrer nessa categoria?
A resposta curta é: simplesmente porque o FX e o Hulu, emissoras responsáveis pela produção e distribuição O Urso, decidiram que sim. Olhando para um contexto histórico, a decisão faz sentido: tradicionalmente, é assim que as séries com meia hora de duração são classificadas pelo órgão que elege os vencedores do maior prêmio da televisão, sempre foi – e aparentemente sempre será.
Carmy em O Urso (Disney/Reprodução)
E O Urso nada mais é que o fruto da evolução de um gênero que vem se popularizando na televisão desde a década de 2010: as séries “slice of life”, produções que abordam o realismo mundano e psique de seus protagonistas e coadjuvantes. São aquelas séries com ar de filme independente da A24 e com meia hora por episódio, como Atlanta, Louie, Girls, Fleabag, Nurse Jackie, United States of Tara, Enlightened, Getting On, Transparent ou Looking. Séries como essas foram ganhando popularidade nos anos 2010 porque foi um período em que as emissoras começaram a ceder mais liberdade autoral para os seus criadores, que muitas vezes estrelavam os programas e vinham de cenários menos tradicionais, como o próprio cinema independente. Todas, por sua vez, concorriam às premiações da indústria na categoria de comédia.
Então, é por isso que O Urso é considerada uma comédia. Mas há também outro elemento em jogo. A Academia, em 2015, decidiu que séries de meia hora competiriam como produções cômicas. Essa decisão foi tomada pois, um ano antes, em 2014, muito foi debochado, pelo público, indústria e até o apresentador da cerimônia principal, Seth Meyers, sobre a indicação de Orange Is The New Black como comédia. Para reverter a situação, foi estabelecido que a partir daquele momento, para uma série de comédia ser indicada na categoria, ela teria que ter duração máxima de meia hora. Já um drama, teria que ter no mínimo 60 minutos. Taparam o sol com a peneira.
Se uma série com duração oposta à categoria quisesse se candidatar do mesmo jeito, ela seria submetida a um painel com 9 votantes aleatórios que decidiram se a série era uma comédia ou um drama. Em 2015, Shameless, Jane The Virgin e a própria Orange Is The New Black, que havia competido no ano anterior, pleitearam vagas entre as produções cômicas. Shameless e Jane The Virgin conseguiram. Orange, por outro lado, foi relegada à categoria dramática e por lá permaneceu até o fim de sua exibição – por mais que o tom da série tenha permanecido o mesmo também até o seu final.
O caso The White Lotus
A confusão também paira sobre a categorização de The White Lotus como Série Dramática, já que ela venceu o prêmio como Melhor Minissérie em 2022. Para entender, também é necessário recorrer ao ano de 2014, porque na mesma edição, a crítica ironizou o fato de True Detective, uma antologia que teria uma história isolada por temporada, concorrer com outros dramas serializados da época.
A HBO decidiu inscrever a produção estrelada por Woody Harrelson e Matthew McConaughey ao lado de Breaking Bad, Mad Men e Game of Thrones para tentar capitalizar sobre o hype da série, indiscutivelmente uma das produções de maior destaque em 2014. Naquela época, a emissora estava buscando recuperar seu espaço em premiações, pois logo após o fim de Família Soprano, em 2007, ela estava com dificuldade de emplacar suas produções no Emmy e no Globo de Ouro, que estavam mais ocupados premiando Mad Men e Breaking Bad, da pequena rede AMC. Então, para elevar as chances de vitória na categoria tida como a mais importante e respaldada do prêmio, a HBO inscreveu True Detective como drama. Para o seu azar, ela competiu contra o último ano de Breaking Bad, e a história você já deve saber como terminou.
Para o ano seguinte, além de determinar o que seria uma produção de comédia e de drama, a Academia também decidiu que uma série limitada ou antologia não poderia deixar brechas para enredos contínuos ou personagens recorrentes em outras temporadas. Pela presença de Tanya, personagem de Jennifer Coolidge, The White Lotus foi automaticamente desclassificada nas categorias de Melhor Minissérie ou Antologia. Isso faz muito mais sentido do que classificar uma série pautando por sua duração, convenhamos.
No entanto, o que questiono aqui é o fato de The White Lotus, claramente uma sátira sobre riqueza e privilégio, e com um tom mais cômico e leve, competir ao lado de The Crown, The Last Of Us, A Casa do Dragão e outras – só a frase “esses gays estão tentando me matar” já torna The White Lotus uma série muito mais engraçada que muitas outras comédias. Até mesmo Succession poderia se enquadrar nesse híbrido entre comédia e drama em série de uma hora. No entanto, a decisão da HBO ao colocar a série sobre a cadeia de resort de luxo como drama é bem mais óbvia: prestígio.
A Era de Ouro da Televisão dos anos 2000 foi estabelecida e popularizada graças a dramas serializados e narrativas densas, que passaram a competir diretamente com o cinema. Considerando que Succession está chegando ao seu fim, e a HBO preza bastante pelo respaldo e aclamação da crítica, a forma que ela encontrou de continuar no topo das premiações e discussões é vendendo os seus projetos no mesmo escopo que as séries que ajudaram a definir as últimas décadas de produções televisivas: como dramas, gênero historicamente com muito mais respaldo e prestígio.
Não existe uma solução “simples” para resolver esse problema – se é que é um problema. Daria muito trabalho reconfigurar toda a premiação e dividir os prêmios entre séries de uma hora e meia hora. Vocês acham que a mesma Academia que decidiu classificar como comédia uma narrativa de meia hora se daria ao trabalho de reestruturar todo o regulamento? Acredito que não. Mas até lá, O Urso vai continuar competindo como comédia, e The White Lotus, em drama.