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Artigo

Lost | A Série

Um acidente de avião, uma escotilha, os nativos hostis, um cargueiro, a Vila Dharma, os candidatos... Seis anos de profusão criativa que mudaram a história da televisão

19.09.2014, às 18H00.
Atualizada em 29.05.2020, ÀS 11H47

Foi no dia 22 de Setembro de 2004 que a grande mudança na programação televisiva do início daqueles anos começou. Criada por Damon Lindelof, Carlton Cuse e J.J. Abrams, a série sobre sobreviventes de um acidente de avião que caem numa ilha misteriosa estreou sem maiores expectativas, deu um nocaute no pessimismo crítico e mudou a forma como as séries de mistério são feitas e assistidas desde então.

Com uma trama que corria em fragmentos, bifurcando-se em eventos pós e pré-acidente, com uma trilha sonora extremamente marcada e personagens construídos numa base muito sólida e muito conectada aos novos conceitos da televisão, transgressão e anti-heroísmo, Lost não apareceu como uma grande promessa (mesmo com seu piloto caríssimo), mas logo se tornou o maior fenômeno cultural-televisivo da última década e uma das obras mais importantes que a dramaturgia já construiu.

Na comemoração desses dez anos, o Omelete vai publicar alguns textos que falam da importância da série. O primeiro deles aborda um pouquinho do que foram todas as seis temporadas, a atmosfera proposta por elas e o impacto que tiveram na mídia e entre os fãs.

Primeira Temporada

"Oceanic 815"

Os olhos de um homem se abrem e há muita luz e muito verde a sua volta. Ele se levanta, trôpego. Está claro que algo não correu bem, mas aquela expressão desnorteada não combina com tanta beleza. Ele corre e se depara com a praia, reforçando a ideia de que seu terno, seu suor, os filetes de sangue e os olhos desesperados não fazem parte daquele quadro paradisíaco. Então ele faz uma curva na areia e podemos ouvir os gritos, o fogo, o som de metal se retorcendo... Tudo está bem claro. Jack (Matthew Fox) está diante do próprio acidente de avião.

Foi assim que o mundo conheceu Lost. O piloto da série, dirigido pelo promissor J.J. Abrams, era uma das coisas mais ambiciosas da TV naquele momento. O que ficou claro naquela estreia, entretanto, não foi só o investimento financeiro, mas o investimento criativo. Ao final de sua primeira hora, os sobreviventes do acidente se deparam com um barulho estranho vindo de dentro da selva. Aquele foi o momento em que se estabeleceu um mito. Lost não viera para ser apenas mais uma produção aprisionada nos lugares comuns.

Do mesmo jeito que o programa se contradizia, sendo um quadro constante de beleza que era tomado de medo e morte, havia também a contradição prática, que fazia com que a linguagem de Lost e seu apelo dramatúrgico tivesse muito mais a ver com os canais fechados do que com o equilíbrio da ABC. Em sua primeira temporada a série estabeleceu que nenhum dos seus personagens tinha um caráter ilibado e conseguiu a proeza de, mesmo assim, nos tornar completamente dependentes deles. A dramaturgia também inaugurou sua própria linguagem, mostrando em flashbacks os momentos daqueles personagens antes do acidente, continuando a bifurcar suas intenções. Nem sempre as pessoas da ilha eram a mesma pessoa fora dela e, desse jeito, continuávamos a ver como tudo em Lost era bidimensionado.

Em 24 episódios (algo que para uma dramaturgia baseada em segredos acabaria sendo muito complicado), o primeiro ano focou-se nos sobreviventes do vôo Oceanic 815, que saiu da rota e caiu numa ilha bastante estranha. Lá havia um monstro espreitando na floresta, pessoas paralíticas eram curadas, era a casa de nativos violentos e tinha uma escotilha enterrada na selva. A cada semana o foco era de um personagem, que tinha seu passado revirado e, com isso, estabelecia a forma como essa pessoa se movimentava no tabuleiro da ilha. Não demorou muito para que Lost se tornasse um grande fenômeno de audiência e tivesse o episódio final mais bem sucedido daquela temporada. A balsa, o sequestro de Walt, a fumaça-preta aparecendo, a explosão da escotilha... Aquela não era uma série qualquer, definitivamente.

Segunda Temporada

"4,8,15,16,23,42"

Um homem acorda com um despertador, se movimenta pelo seu quarto normalmente, coloca uma canção de Mama Cass Elliot pra tocar e essa canção diz: make your own kind of music. Essa é a metáfora para o destino e o futuro de Lost. Esse homem parece estar num lugar absolutamente comum, mas quando a câmera voa para o túnel de onde saiu o barulho de uma explosão, vemos que novamente temos a natureza da ilha em contraste com um pedaço de um mundo sistemático. Aquele é o interior da escotilha, um lugar onde um homem chamado Desmond (Henry Ian Cusick) tem que apertar um botão a cada 108 minutos, ou o mundo acabaria. Essa era, claro, só mais uma das pistas para um futuro que seria devidamente esclarecido, em algum ponto. Mas o que a segunda temporada de Lost estabeleceu foi que ela tinha o controle e que estava disposta a nos fazer perder o fôlego.

Além disso, também começamos a perceber que a cada temporada os roteiristas focavam sua narrativa num aspecto importante da mitologia da ilha; que a essa altura já era tomada por uma infinidade de perguntas. O segundo ano foi a temporada dos sobreviventes da cauda do avião, que também inauguraram a sucessão de mitos a respeito de algumas decisões criativas. Há quem garanta que o comportamento de Michelle Rodriguez e Cynthia Watros nos bastidores é que teria determinado o destino de suas personagens, mas a brutalidade com a qual Lost se livrava de seus peões ficou conhecida e apareceu em todas as temporadas.

O segundo ano foi absolutamente tomado de narrativa, não tivemos um só minuto para respirar. Agora também tínhamos os números, o pé de quatro dedos, Henry Gale, as listas de sequestrados pelos Outros, uma infinidade de detalhes e referências que tornavam a mitologia cada vez mais rica. Ao final desse segundo ano o sucesso já era tão grande que os finais de temporada precisavam ser absolutamente proporcionais à expectativa. Então, ao final, tivemos respostas e novas perguntas, sendo a maior delas a que questionava se seria possível que Lost continuasse tocando sua própria música, de novas e excitantes formas.

Terceira Temporada

"We have to go back"

Numa das sequências de abertura mais inteligentes e impactantes da série, Lost começou seu terceiro ano mostrando que os Outros viviam numa vila organizada, no meio da ilha, e que assistiram de camarote a queda do avião. Ali estava, de novo, o contraste do qual já comentamos. Aquela vila não parecia em nada com algo que pudesse fazer parte da floresta e só percebemos que aquela era outra colisão de impressões quando o avião corta o céu aos pedaços. Esses "nativos" viraram o centro narrativo da terceira temporada e assistimos, estupefatos, a organização e humanização deles, principalmente através das figuras de Ben (Michael Emmerson) e Juliet (Elizabeth Mitchell).

Aqui, no entanto, começaram a surgir os primeiros problemas. Pressionada pela responsabilidade de fazer temporadas de 22 episódios os roteiristas começaram a encontrar um obstáculo inevitável: criaram um ritmo de revelações constantes e não sabiam o quanto poderiam continuar relevando sem entregar demais antes da hora. Assim, era necessário estabelecer quanto tempo a série duraria para poder arrumar a abordagem de segredos sem deixar buracos. Numa decisão inusitada para o mundo sempre tão cruel dos executivos dos canais estadunidenses, os criadores da série conseguiram fechar um contrato de mais três anos, com 16 episódios cada, usando o argumento mais irrefutável e abstrato possível: precisamos preservar a qualidade da nossa história.

Mesmo com esse acordo planejado, o terceiro ano sofreu consequências. A primeira metade da temporada tinha Jack, Kate (Evangeline Lilly) e Sawyer (Josh Holloway) presos pelos Outros e foi duramente criticada por conta de seu ritmo lento. Quando a narrativa voltou a se centralizar na ilha, vimos uma boa leva de episódios leves, voltados para o humor, que jogavam com a nossa simpatia pelos personagens muito mais do que com a movimentação mitológica. Foi nesse ponto que as pressões para manter o interesse do público e continuar se reinventando apareceram com força e abriram as discussões sobre controle criativo que, numa produção como essa, fazem toda diferença.

Outro erro foi a introdução de Paulo e Nikki, que infelizmente teve um amargo específico para os brasileiros. Buscando frescor e novos ângulos, os roteiristas decidiram abordar outros sobreviventes e Rodrigo Santoro e Kiele Sanchez foram contratados para viver os personagens. O problema foi que Paulo e Nikki surgiram num momento complicado, quando o público estava insatisfeito com os rumos da trama e boa parte daquela rejeição foi projetada neles. Assustados com as críticas, Lidelof e Cuse fizeram uma limpa naquelas arestas desnecessárias, o que resultou no sacrifício dos novos personagens.

Em seguida, veio uma sequência impressionante de episódios que culminou no momento definitivo que escreveu o nome da série na história. Sem que ninguém esperasse, os roteiristas nos provocaram com aquela que seria uma das respostas que mais esperávamos: afinal, eles saíram da ilha? O choque ao ver Jack e Kate na sequência final falando sobre terem saído foi tão grande que o mundo todo rendeu-se à ousadia do programa, que manipulava dramaturgia de uma forma como nunca tinha sido vista antes. O terceiro ano terminou assim, devorando o resto do cenário dramaturgico da TV sem nenhuma cerimônia. Até então, Lost tinha conseguido o impensável: passar por três temporadas nos desafiando, nos tirando do eixo, nos fazendo retorcer na poltrona, nos enriquecendo com uma inteligência e criatividade que chegava, sem dúvida nenhuma, a ser comovente.

Quarta Temporada

"Oceanic Six"

Foi um quarto ano ligeiramente confuso. A longa greve dos roteiristas afetou absolutamente todos os programas de TV - e Lost não escapou. A temporada foi encurtada em dois episódios e mesmo que os produtores garantam que isso não afetou o planejamento, não saberemos nunca se a afirmação é verdadeira. O quarto ano abordaria a trama do cargueiro e da saída da ilha, que novamente mudou a dinâmica da narrativa. Foi com especial deleite que a identidade dos seis que conseguiram ir embora virou um ponto especial da temporada.

Os flashbacks deram lugar aos flashforwards. Nunca tínhamos certeza absoluta se o que estávamos assistindo era um pedaço do passado ou do futuro dos personagens e, muito espertamente, os roteiros brincavam com essa dinâmica constantemente. Havia um episódio, em especial, focado em Sun (Yujim Kim) e Jin (Daniel Dae Kim) que era a representação maior dessa sagacidade do texto. Além de mostrar os eventos da ilha, ele mostrava Sun tendo sua filha e Jin correndo para visitar um recém-nascido no hospital. Tudo fazia parecer que se tratava de uma mesma linha temporal mas, no final das contas, Sun estava fora da ilha, no futuro; e Jin no passado, antes do acidente. Assim, ficamos sabendo que ela era um dos Oceanic Six, e ele não.

O quarto ano tomou decisões estranhas, como as formas como Russeau (Mira Furlan) e Alex (Tania Raymond) foram mortas. Ele também focou muito na guerra entre os Outros e o pessoal do cargueiro, trouxe quatro personagens novos que oscilavam em empatia e levantou uma quantidade impressionante de novas perguntas. A questão é que no episódio final a série continuou mantendo seu compromisso de ousar e superar limites. O último episódio encerrou a temporada respondendo todas as perguntas sobre a saída da ilha e ainda subindo outro nível de abordagem científica e mitológica. Isso estabeleceu a natureza do ano seguinte, que acabaria sendo um dos mais controversos da série.

Quinta Temporada

"Namastê"

O quinto ano expandiu as possibilidades de uma forma que acabou determinando quais as parcelas de público seriam positivamente afetadas pelas decisões tomadas. A mistura de energia eletromagnética com mitologia resultaria, em algum ponto, numa constatação de que algumas respostas precisariam vir de acordo com essa junção. Lost foi muito sensata na maioria do tempo, conectando reações físicas e científicas com coisas que vimos começarem a acontecer lá no ano dois. Também precisamos entender que nem todo mundo se relaciona bem com essas especulações, mesmo que em essência, Lost tenha querido também mostrar o passado da ilha de uma forma pouco convencional: levando seus personagens até ele.

Visitar a ilha em pontos diferentes do tempo resultou em ótimos momentos, ajudou a arrumar boa parte do quebra-cabeças e trouxe referências interessantes à tona. Porém, não podemos ignorar o fato de que em termos de narrativa funcional, todo o tempo que passamos conhecendo o mundo da Iniciativa Dharma acabou funcionando como uma alegoria. Sawyer cresceu na trama, conhecemos mais sobre Widmore (Alan Dale), tivemos pequenos momentos deliciosos de mitologia saltando aos olhos. Mas, efetivamente, essa exploração do passado apenas ajudou a superar um ciclo da trama, através de uma boa convergência, enriquecendo de informações mais concretas o universo que começou a ser construído lá atrás, desde que os primeiros símbolos da Dharma começaram a aparecer. Sob esse aspecto, não podemos dizer que não se tratou de um movimento necessário, mesmo que extremamente perigoso.

No episódio final vimos toda a ação do passado se arranjar em outro movimento provocativo brilhante dos roteiristas. Haveria a possibilidade de anular o futuro ao mudar o passado? E teriam sido os próprios sobreviventes os responsáveis por provocar o incidente que resultaria na queda do avião? O ano seis não respondeu a segunda pergunta, mas respondeu a primeira. Uma vez estabelecido que não se pode mudar o que aconteceu, o resultado da explosão seria apenas a devolução deles para o tempo atual. Porém, numa outra tentativa de reinventar a estrutura narrativa da série, o último ano veio com os flash-sideways, aqueles que foram, em boa parte, responsáveis por toda a decepção com o episódio final.

Sexta Temporada

"O que aconteceu, aconteceu"

Não é fácil defender a última temporada de Lost. Ela é, sem dúvida, não só um fenômeno de audiência, mas também de controvérsia. Depois de seis anos, os fãs estavam absolutamente famintos por respostas claras sobre alguns dos mistérios, que eram, em essência, absolutamente abstratos. Para a parcela do público que se entendeu bem com as decisões tomadas, os flash-sideways (recortes de uma realidade alternativa onde o acidente nunca teria acontecido) eram uma liberdade poética justa com personagens que viveram a experiência mais incrível de suas vidas e que foram, em algum momento, elos de uma corrente que fora unida por uma entidade sobrenatural desconhecida (Jacob). Mas para a parcela do público que não aceitou a abordagem lúdica, os flashes foram um oportunismo barato dos roteiristas, que provocaram todos com a ideia de que a explosão teria anulado o futuro, quando de fato, não anulou.

Essa última temporada começou sob a tutela de Locke (Terry O'Quinn), que em outra virada genial da história, não era ele mesmo e sim a versão personificada do Monstro de Fumaça, que estivera todo esse tempo manipulando John e Ben para que eles servissem como a brecha necessária a seus planos. Sendo assim, todos os ciclos do ano seis tentavam crescer na direção do apogeu da consciência dos candidatos de que eles estavam ali por uma razão e com um objetivo final. Ainda que coisas tolas como o "farol de Jacob" e o chefão do templo tenham borrado esse ano, coisas como o episódio sobre Richard Alpert (Nestor Carbonell) e a convergência de correlações entre os números e os sobreviventes, foram absolutamente coesas e catárticas.

Porém, quando lá pelo final eles resolveram colocar no ar o famigerado "Across the Sea", a coisa toda encontrou certo desequilíbrio. A decisão de falar sobre "a luz" que tornava a ilha especial era delicada. Os mais atentos saberiam que essa abordagem mítica da mãe de Jacob era movida pelo desconhecimento dos fatores científicos daquela luz, que era nada mais nada menos que uma fonte maciça de energia eletromagnética, tão abordada pela trama durante a série. Mas aquele flerte sobrenatural só serviu pra confundir e incomodar a maioria. Era essa energia, possível e existente em doses bem menos agressivas, que permeava tudo de fantástico acerca de Lost.

Mas aí veio o episódio final, que não tinha mais nada a responder sobre a mitologia, precisando apenas decidir quem seria o próximo Jacob e qual seria o destino dos personagens depois disso. Nessa questão, foram irretocáveis. A ação da ilha, as epifanias  de Jack e Hurley (Jorge Garcia), o avião que salvou alguns personagens, a morte que encontrou outros, o bambuzal do episódio piloto e os olhos de Jack se fechando pela última vez. Ali, naquele último piscar, estava embutida a maior revelação acerca dos flashes alternativos: em um plano posterior à vida, pessoas que viveram juntas experiências muito fantásticas, podem se encontrar e compartilhar a consciência disso. É um conceito espiritualista que flerta com o sentimentalismo, mas que tem sua força no que ficou decidido e estabelecido desde que a série começou: todos eles estiveram unidos pelo destino, por amarras muito claras, sendo lembrados o tempo todo de que não havia como escapar disso.

Destino, fé, mito e ciência, foram as palavras-chave de Lost desde o começo, sendo ela o resultado mais contundente da união de todos esses conceitos. O destino que os unia contra a vontade deles, a fé que foi manipulada para intuitos nem sempre nobres, a ciência que foi confundida com mito, numa piscada de olhos dos roteiros para teorias que vêm sendo discutidas há muito tempo. O que se lê nas páginas de Eram os Deuses Astronautas não é nada mais que isso: ciência, tecnologia ou natureza, sob prismas nunca vistos pela humanidade, sendo confundidos com mitos, por conta da incapacidade humana de reconhecer essas questões. E lá fundo, só por provocação, uma pequena dose de sobrenatural porque, enfim, a vida está cheia dessas ousadias superiores.

Nunca, em toda a história da televisão, uma história foi contada de formas tão ousadas, tão provocativas, tão cheias de referências, construindo um universo tão especial, que acabou tornando a experiência de acompanhá-la numa versão real daquilo que muitos terminaram criticando. A sociedade dos fãs de Lost é imensa e, durante seis anos, mergulhou encantadoramente em tudo que dizia respeito a ela. Mesmo que de idades diferentes, de sexos diferentes, de geografias diferentes, naqueles momentos diante da TV, todos nós estávamos compartilhando uma experiência única, jamais sentida e compartilhada, que nos unia contra a nossa vontade e que nos controlava completamente, nos tornando críticos ferrenhos, teóricos vorazes, parte de uma rede quase lúdica de emoção e catarse. Talvez nós, daqui a muito tempo, nos encontremos num flash alternativo qualquer, para compartilhar novamente a experiência poderosa e inacreditável de ser fã de Lost.