Um dos elementos mais fascinantes de O Gambito da Rainha, série sensação da Netflix que acumulou indicações ao Emmy, foi sua ilusão de realidade. Logo após seu lançamento na plataforma, buscas no Google sobre a personagem da série na vida real dispararam, mostrando um público confuso sobre os fatos que se passam na telinha. A resposta é que O Gambito da Rainha não tem nada de real. Sua estrutura se assemelha muito a filmes que recontam histórias verídicas, mas fato é que não há nada de realista na jornada de Beth Harmon.
Não me entenda mal; O Gambito da Rainha é uma novela que funciona, uma história para quem quer admirar os poderes de atuação de Anya Taylor-Joy e se divertir aprofundando-se num universo de xadrez que há anos não ganhava uma história no mainstream. Mas um de seus maiores problemas foi evidenciado essa semana pelo processo movido contra a série pela enxadrista Nona Gaprindashvili.
A ex-campeã georgiana de xadrez processou a plataforma por difamação por uma sequência na série que faz referência à sua carreira. Além de ser chamada de russa erroneamente, O Gambito da Rainha diz que Gaprindashvili passou a carreira sem enfrentar nenhum homem no xadrez, distorcendo o fato de que a enxadrista, na época dos comentários no contexto da série, já havia competido com pelo menos 59 homens enxadristas, incluindo 10 Grandes Mestres. O processo da enxadrista diz que “a Netflix descaradamente mentiu [...] pelo propósito barato e cínico de 'elevar o drama' por fazer parecer que seu herói fictício conseguiu fazer o que nenhuma outra mulher, incluindo Gaprindashvili, havia feito”.
Apesar da Netflix ter dispensado a alegação, dizendo que a “queixa não tem mérito”, a frase é certeira. Ainda mais, ela enfatiza o elemento mais questionável de O Gambito da Rainha: seu completo desprezo pela jornada única de uma mulher em um campo dominado por homens. Apesar de uma protagonista feminina, O Gambito da Rainha passa longe de feminista: ela mostra uma criança prodígio nunca enfrentando dificuldades pelo seu gênero, algo que já havia sido chamado atenção pela hexacampeã brasileira feminina de xadrez Juliana Terao: “Acho que na vida real teria sido bem diferente. Os jogadores não aceitariam tão facilmente serem dominados por uma mulher”, disse ao Omelete.
Netflix/Divulgação
A resistência da série em se mostrar feminista não é exatamente o seu problema. Mas O Gambito da Rainha também constrói sua personagem de um olhar obviamente masculino. A jornada de Harmon se assemelha muito aos personagens prodígios do cinema como Will Hunting em O Gênio Indomável, John Nash em A Mente Brilhante ou até Sherlock Holmes na série de TV Sherlock. A diferença é clara: eles são homens. E a jornada de uma mulher certamente é diferente.
É curioso que a série da Netflix teve um cuidado muito claro em retratar o universo das competições de xadrez, algo pelo qual recebeu elogios de enxadristas ao redor do mundo, e isso tem um motivo muito claro: Garry Kasparov, campeão mundial de xadrez, serviu como consultor, sugerindo mudanças em cenas essenciais dos jogos de Beth. Apesar de ter servido muito bem seu propósito - o que fez com que a Netflix impulsionasse o interesse do público em xadrez - a visão do consultor masculino não ajudou a construir uma história de protagonismo feminino. Para falar de modo ainda mais direto: os créditos de O Gambito da Rainha não incluem nenhuma mulher envolvida no roteiros ou história.
Este olhar masculino do O Gambito da Rainha chegou até a virar meme, quando o público cutucou a série pela cena em que Beth Harmon “atinge o fundo do poço”. É uma cena hilária quando você para para pensar. Achar que a decadência da saúde mental de uma mulher viciada em remédios e álcool é algo tão rock n' roll - e sejamos honestos, limpo e até sedutor - chega a ser engraçado. E passou batido como piada até hoje, mas o processo jurídico contra a série eleva e evidencia os problemas deste retrato.
Netflix/Divulgação
O Gambito da Rainha fez mais do que ignorar a jornada distintamente feminina. Hoje, após o processo e as acusações válidas de Gaprindashvili, a série da Netflix chama mais atenção pelos seus erros do que seus acertos. Minimizar a jornada de uma mulher real para elevar sua protagonista é mais do que ignorar uma narrativa feminina, é jogar contra, e enterrar conquistas relevantes de modo injusto e contrário a qualquer mensagem que a série pareceu querer passar.