Apontar qual foi o período em que a televisão deixou de ser vista por Hollywood como “o patinho feio do entretenimento” não requer muito esforço. Foi mais ou menos naquela época após o término de Família Soprano e o surgimento de títulos como Mad Men e Breaking Bad. Logo, um padrão narrativo foi estabelecido e prontamente replicado em outras produções, como Dexter, House of Cards, The Walking Dead, Game of Thrones, entre outras.
Nas entrelinhas, a regra era bem clara: para se desenvolver uma série de sucesso, bastava concentrar sua narrativa em um homem branco, errático e que esconde um segredo obscuro sob uma fachada — e, às vezes, de meia-idade. São os famigerados “homens difíceis”, arquétipo batizado por Brett Martin, jornalista e autor do livro Homens Difíceis: Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias (2015). E foram justamente essas figuras as propulsoras de um movimento chamado “TV de prestígio”.
Mas naturalmente, como acontece com toda e qualquer tendência, esses “Poderosos Chefões” cansaram. Não leve a mal, nem de longe isso deve ser entendido como uma ofensa às produções mencionadas neste texto. Muito pelo contrário, é inegável a contribuição de figuras como Tony Soprano e Walter White para o panorama televisivo. Contudo, todas as maiores e as principais histórias de sucesso das telinhas de 2021 se apoiaram em figuras que servem como contraponto aos anti-heróis brancos: figuras masculinas frágeis e mulheres em estado de catarse.
A fragilidade do cromossomo XY
Homens com vulnerabilidade à flor da pele nunca tiveram tanta importância na cultura pop quanto ultimamente. Observe The White Lotus, por exemplo. A minissérie da HBO, e facilmente uma das produções mais comentadas e aclamadas do ano, é praticamente uma crítica à “brancura” dos chefões da sociedade. E seus “grandes homens” não passam de moleques de bigode.
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Armond, Kendall Roy e Gi-Hun, de The White Lotus, Succession, e Round 6, respectivamente, fogem a regra do “homem durão” instituída pela TV de prestígio. (HBO e Netflix/Montagem Omelete)
A produção acompanha Mark (Steve Zahn), um pai que se sente emasculado diante a figura de sua esposa; Shane (Jake Lacy), um mauricinho que acredita ser dono do mundo — mas que não é capaz nem mesmo de escolher um quarto de hotel sem o envolvimento da mãe; e Armond (Murray Bartlett), o chefe do resort de luxo à beira de um ataque de nervos. Não há um traço sequer nesses homens os coloquem num patamar de bravura — ou de aspiração.
Nem mesmo uma narrativa de vitória e um pseudo-heroísmo colocam Round 6 — talvez o maior sucesso do ano — em pé de igualdade com as trajetórias dos anti-heróis brancos da televisão. Protagonizado por um total zero à esquerda, Gi-Hun (Lee Jung-jae), ele entra no enigmático “jogo da lula” com a única intenção de ser valorizado pela ex-esposa e filha. E mesmo que saia vitorioso da jornada, seus esforços hercúleos passam quase incólumes quando comparados à destreza da jovem Kang Sae-byeok (Jung Ho-yeon) ou à sagacidade de Cho Sang-woo (Park Hae-soo).
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Até mesmo trajetória de Gi-Hun contém mais traços de bom-mocismo e caráter do que qualquer outro personagem da série, jogando-o bem longe dos elementos básicos para compôr um “homem difícil”. (Isso sem nem mencionar a importância da representação asiática com o sucesso da produção da Netflix)
Voltando à televisão americana, existe até um argumento que poderia conectar Succession ao modelo narrativo batizado por Brett Martin, mas ele é falho. Embora a figura de Logan Roy (Brian Cox) seja um dos pontos principais do drama de prestígio da HBO, o público gosta mesmo é de acompanhar as jornadas emocionais de seu filho, Kendall (Jeremy Strong) — facilmente visto como um completo banana. Um homem mimado e totalmente assombrado pelo tiranismo pai, Kendall é uma figura frágil, mentalmente instável e patética se comparado com a imagem que ele acredita tanto projetar.
Peço perdão pelo trocadilho, mas o sucesso de Succession é, indubitavelmente, muito mais creditado aos filhos do magnata por trás da Waystar Royco do que o contrário.
Wanda Maximoff, Ava Daniel, Deborah Vance e Mare Sheehan não são "exemplos" — e também nem querem ser (Disney e HBO/Montagem Omelete)
Mulheres em estado de catarse
Se foram as fragilidades do homem moderno que contribuíram para descrever o panorama televisivo em 2021, o mesmo pode ser dito sobre as figuras femininas em estado de catarse que dominaram a tela. À medida que mais mulheres foram às ruas — e às redes sociais — registrar a sua fúria em relação à política, pandemia, disparidade de gênero e fortalecer o movimento #MeToo, a televisão, consequentemente, também abriu espaço para figuras femininas ferozes.
Uma quantidade absurda de séries concentrou seus esforços em mostrar mulheres nem tão dóceis assim. Raivosas e sem remorsos — qualidades vistas como “não femininas” —, as séries deste ano capitalizaram justamente na fúria e na catarse delas. São as implacáveis comediantes de Hacks, da HBO Max, Deborah Vance (Jean Smart) e Ava Daniels (Hannah Einbinder), que se colocam em pé de igualdade com outros homens quando o assunto é fazer comédia. Grossas e intensas, a dupla é deliciosamente ácida e "mal-educada". Elas não são exemplos para ninguém — e também não querem ser.
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Outras brilhantes representações desse estado mental das mulheres da telinha vieram sem muitas piadas. Mare of Easttown, Maid e Impeachment: American Crime Story foram outras produções do ano, e todas especialmente focadas em retratar mulheres lutando ferozmente contra maus-tratos e cenários que colocaram sempre o dito "sexo frágil" em desvantagem, seja no departamento local da polícia de uma pequena cidade, lutando para sobreviver contra a pobreza norte-americana ou como peça-chave em um dos maiores escândalos de conduta sexual conectados a um presidente.
- Mare of Easttown refresca o drama investigativo com foco em personagens
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WandaVision também foi uma narrativa sobre uma mulher em busca de libertar seus verdadeiros sentimentos, ao ressignificar o luto e o seu lugar enquanto dona de casa. Estrelada por uma Elizabeth Olsen ensandecida, a fúria de Wanda Maximoff foi de importante liberação para todos os sentimentos que nos atingiram parante mortes e mais mortes causados por uma pandemia.
É mais gratificante ainda saber que o ano foi repleto de histórias bem sucedidas estreladas por mulheres após a rajada de cancelamentos em 2020. Na ocasião, foram dezenas de títulos protagonizados por elas que foram cancelados graças ao impacto do novo coronavírus, como On Becoming a God in Central Florida e até mesmo GLOW — cuja temporada final já havia sido aprovada pela Netflix.
Se os dramas estrelados por anti-herói brancos ainda podem recuperar sua posição artística para se igualar ao sucesso de audiência ou status de outrora, ainda não se sabe. Mas após a lufada de ar fresco que foi acompanhar um ano repleto de novas perspectivas e representações, não pegaria mal desejar que esse arquétipo fique repousando por mais tempo.