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Silvio Santos ganha retrato reverente, mas ainda assim ácido, em O Rei da TV

Série biográfica não autorizada quebra mística da figura televisiva para mostrar tubarão empresarial

19.10.2022, às 11H07.
Atualizada em 05.11.2022, ÀS 10H40

Poucas vozes são tão cristalinas no imaginário popular brasileiro quanto a de Silvio Santos. Além da projeção vocal encorpada, o dono de SBTTele SenaJequiti e de uma fortuna que ultrapassa a marca dos R$7 bilhões também guarda alguns dos vícios de comunicação mais icônicos da TV nacional - do "m" ao final de palavras com vogal aos bordões "ma, oe" ou "ai, ai, ai, ui, ui". Na telinha há 60 anos, o ex-vendedor ambulante quase viu seu lugar como ícone das salas de estar do país ameaçado em 1988. Foi quando uma crise de saúde colocou em risco a mesma voz que o levou ao topo do entretenimento nacional, forçando-o a se afastar do olhar público por meses e, eventualmente, motivando-o a se aventurar na política.

É esse período de vulnerabilidade que O Rei da TV, a primeira série de TV biográfica (não autorizada) sobre Silvio, usa para quebrar a mística de um ícone e humanizar a trajetória de sucesso do mais célebre "self-made man" brasileiro. Com direção geral de Marcus Baldini (Bruna Surfistinha), trabalhando ao lado de Carol Minêm (Macho Macho Man) e Julia Jordão (O Negócio), a produção da Gullane Entretenimento para o Star+ divide em três a persona do empresário e apresentador: parte do pânico que se instaura em um Silvio mais maduro (José Rubens Chachá), com o risco de perder a voz, para passar pela infância do jovem judeu Senor Abravanel (Guilherme Reis) e seu ingresso na indústria do entretenimento já na maioridade (Mariano Mattos Martins) — com as consolidações de sua persona e de seu nome de palco. Nos três episódios da série que o Omelete conferiu antecipadamente, revela-se um retrato reverente, mas ainda assim ácido, de uma estrela.

Em "A Geléia É Minha", primeiro dos oito capítulos que compõem esse ano de estreia, Chachá surge com os famosos cabelos cor de acaju, o largo sorriso e os tiques cênicos de Silvio, mas logo abre caminho para que Reis incorpore o jovem e ainda cru Senor em sua jornada de descoberta de talentos. Do contraste entre o ícone feito e o garoto que um dia seria rei, essa abertura tira seu maior trunfo, porque ilustra rápida e instintivamente ambas as facetas que sustentam a série: o hábil comunicador e o empresário voraz. Quando está à frente das câmeras, a versão veterana do personagem é excêntrica e carismática, mas quando trata dos problemas do SBT nos bastidores, é ríspida e egocêntrica. Em um cabo de guerra interno com Gugu Liberato (Paulo Nigro), vemos a objetividade do empresário Senor perder para o estrelismo do apresentador Silvio. E, quando viajamos no tempo para ver a jornada do jovem Senor como camelô, vemos essa dualidade espelhada na traição a um mentor das ruas (Augusto Madeira), que desemboca no nascimento de Silvio.

O estudo de personagem se aprofunda em "Canta, Peru", que pula do cabo de guerra entre o apresentador, Gugu e outras lideranças do SBT, para seu ingresso no rádio brasileiro, em 1950. Nessa linha temporal pregressa, acompanhamos não só como o futuro Homem do Baú tornou-se protegido de Manoel de Nóbrega, como também como ele aplicou um golpe em seu mentor para tornar-se, justamente, o Homem do Baú. Ou melhor: para tornar-se sócio do então mequetrefe Baú da Felicidade — que viria a ser a pedra fundamental do bilionário Grupo Silvio Santos. Martins encarna essa fase do personagem fazendo com destreza a ponte entre o olhar sonhador de Reis e a impavidez colossal de Chachá; tudo com o adicional de uma irresistível energia frenética. Mais uma vez, também, a exaltação da série ao carisma nato do apresentador encontra como rédeas o retrato frio de deslizes éticos em benefício próprio. Agora, ressaltados com uma participação cômica de Leandro Ramos.

Por fim, é reservado ao episódio "O Rei dos Domingos" o ingresso de Silvio na TV brasileira, reforçando ainda mais a rivalidade oitentista do apresentador com Gugu (um símbolo de uma possível obsolescência que o incomodava e um lembrete do que ele mesmo havia feito com um mentor) e destacando grandes chagas dos bastidores da telinha no Brasil. Nesse recorte, especificamente, o sexismo e o racismo dos anos 1960 são colocados explicitamente na voz de Silvio, que ao assumir os domingos da antiga TV Paulista (hoje, a Rede Globo em São Paulo) imediatamente subscreve aos moldes preconceituosos da indústria da época  — incluindo aí a negação, no meio artístico, de seu primeiro casamento.

Tudo isso vem embalado em um roteiro divertido e repleto de referências, assinado por Mikael de Albuquerque, com colaboração de André Barcinski, Ricardo Grynszpan, Henrique Melhado e Marcela MacedoO Rei da TV ainda traz uma direção de arte primorosa, capaz de recriar com simplicidade, mas enorme veracidade, tanto os cenários de época necessários para ancorar a história como também os bastidores televisivos cheios de nostalgia para colori-la. Conforme se desenrola em tela, a produção brinda o espectador com aparições especiais de figuras carimbadas da cultura pop nacional, sejam elas com nome e sobrenome (como é o caso de Sergio Mallandro, vivido por Gui Santana) ou sob um pseudônimo (como acontece com o chefão da Globo, Boni, que se torna Rossi).

Com ares de superprodução e um bom equilíbrio entre homenagem e crítica, navegando bem a linha entre entretenimento e informação, O Rei da TV já pode, mesmo que em só três episódios, dar as mãos a produções como Hit ParadeBingo - O Rei das Manhãs e Hebe - A Estrela do Brasil no ról da da cultura pop brasileira que observa com sapiência a si própria. Em uma de suas cenas mais virtuosas na série, Chachá diverte e constrange igualmente ao protagonizar uma tentativa de intimidação torta de Silvio contra Gugu. Trata-se de um exemplo perfeito do deleite que é ver ícones de nossa própria terra à serviço da liberdade criativa da ficção. Como diria o próprio Abravanel, é: "Ma... Ma... Ma... Muito bom".