Em 1990, o ator João Alberto Pinheiro se tornou um imenso sucesso na novela Pantanal ao viver o mordomo Zaqueu, que viajava para as terras de José Leôncio e acabava se tornando um personagem central do núcleo cômico da trama. Antes de mais nada, precisamos deixar uma coisa estabelecida: toda novela, para ser chamada de novela, precisa abraçar a comédia, precisa dar tempo ao espectador para rir, para ir pegar um refrigerante na geladeira. Às vezes a novela não tem equilíbrio nessa troca de tons, mas sem graça não tem jogo narrativo.
A questão da comédia dentro das novelas é complexa, porque, quase sempre – e principalmente nas tramas antes dos anos 2010 – o cômico era acessado através dos códigos que agora estão sendo combatidos. A presença de Zaqueu na versão dos anos 90 tinha uma única função: o escárnio. A escrita de Benedito Rui Barbosa ainda tentava dar ao personagem uma redenção afetiva, mas isso era um despiste, uma maneira de aliviar as críticas a uma pergunta maior: Existe algo mais pensamento-de-homem-hetero do que imaginar como seria engraçado colocar um homem gay num ambiente cercado de “machezas”?
Em 1990 não havia discussões abertas sobre homofobia. De fato, nada do que foi feito com o Zaqueu original foi propositadamente errado. Não tenho dúvidas de que as intenções de Benedito ao fazer o personagem se apaixonar por Alcides eram de aprofundar minimamente a história. Mas, até aquele ponto, a presença do afeto homossexual na TV era sempre dentro dessa dinâmica “homo apaixonado por hetero”, explorada pelos autores por duas únicas vertentes: a do interesse financeiro ou a do sofrimento platônico. Gays eram predadores de homens heteros ou viviam em sacrifício por um deles.
Nunca vou me esquecer de como era belo e ao mesmo tempo complicado, ver Maria Luisa Mendonça em Engraçadinha (1995), implorando para ver somente um seio da amada, depois de tentar a mesma coisa através de uma chantagem. Em Suave Veneno (1999), Uálber (Diogo Vilela) passava a trama toda apaixonado por um balconista de bar, numa reprodução absoluta da ótica das relações homossexuais entre homens gays que viveram em gerações anteriores aos anos 2000. Era a antiga tradição do homem gay afetado que se relaciona em segredo com um policial, soldado, mecânico, operário, qualquer uma dessas profissões; e que de preferência fosse casado.
A TV transportava essa noção para o imaginário coletivo, se baseando numa verdade que na ficção virava um clichê. Os clichês, inclusive, são isso aí mesmo... uma verdade exagerada ou cristalizada, que bloqueia a capacidade das pessoas de querer expandir seus conhecimentos sobre determinado nicho. Os gays eram isso... e eram um milhão de outras coisas, tinham um milhão de configurações de relacionamento, um milhão de possibilidades... Mas, o que chegava à TV era só o que pudesse confirmar a ótica superficial... ou fazer rir.
Peão Frozô
A encomenda do remake de Pantanal foi recebida com muita festa. Foi com surpresa que eu percebi na escrita de Bruno Luperi uma tática para modernizar o discurso sem mudar a estrutura. Ele mantém intactos mais de 95% dos acontecimentos em relação à obra original; e coloca na boca dos personagens o que precisa ser dito para aliviar o julgamento sócio-político. Assim, se a gente prestar bastante atenção, nada acontece de maneira diferente ao que aconteceu nos anos 90, mas um ou outro personagem faz o trabalho de conscientização em um diálogo. Foi o que vimos no emblemático capítulo 85, quando José Leôncio fez o primeiro discurso sobre homofobia para os peões. O que eu estou tentando fazer aqui não é, de maneira alguma, invalidar essa tática. É muito melhor que tenhamos isso do que não tenhamos nada. Não podemos negar, contudo, que a coisa toda soa tão natural quanto aqueles merchans da Rexona.
Se alguém diz “se mudasse muito não seria Pantanal” não deixa de estar certo. De fato, a questão é muito maior e toca naquilo que problematiza todo e qualquer remake: ele era necessário? Pantanal tem se mostrado um acerto. A novela é realmente muito bem feita, quase todo o elenco foi bem escalado e o ritmo tem poucos deslizes. Porém, a necessidade de não tomar liberdades demais produziu essa ambiguidade: todo mundo diz o que é certo, mas as ações ainda estão presas lá em 1990.
O Zaqueu de Silvério Pereira não é uma figura submissa e patética, como era o da versão original. Esse foi o primeiro sinal de que estávamos num caminho promissor. Mas, sejamos francos, pensando muito friamente, um personagem como o Zaqueu, sem mudanças de condução drásticas, enfrentaria problemas inevitáveis no processo. E a maior delas se resume a uma simples pergunta: por que alguém como ele, que tem a beleza de estar confortável na própria pele, iria querer ser peão?
A resposta mais rápida é aquela que o próprio ator dá em suas entrevistas: Zaqueu está sendo movido pelo senso de pertencimento. Mas, será que podemos chamar de pertencimento, aceitação, um caminho que inclui, deliberadamente, a absorção de valores heteronormativos? Tanto Zaqueu quanto Jove (Jesuíta Barbosa) foram absorvendo os modos e trejeitos dos peões; e isso – assim como nos anos 90 – é usado pelo texto para demonstrar o amadurecimento dos personagens. Quanto mais peão, mais másculo, mais parecido com o meio, mais aceito; e não só pela fantasia. Zaqueu e Jove foram sendo aceitos pelo texto, foram sendo abraçados pelo texto, foram sendo simpatizados aos olhos da audiência.
Sempre me pego me perguntando... Será mesmo que seria tão difícil recriar Zaqueu com ele chegando à fazenda, se misturando entre os peões sem precisar se tornar um deles? Mas, então pode haver um peão gay? Claro que sim. Dramaturgicamente falando, acho que seria mais rico se um peão gay tivesse nascido naquele meio e fosse buscando autoaceitação por conta da convivência com Zaqueu. O peão continuaria sendo um peão, Zaqueu continuaria sendo Zaqueu e teríamos o equilíbrio entre mudar e não mudar a história. Também sempre me pergunto por que a ligação dele com Alcides precisa ser romantizada, platônica. Eles não poderiam ser só o homem gay e homem hetero que se tornam amigos a despeito de todas as diferenças? Repetir a paixão de Zaqueu por Alcides condena o ex-mordomo à solidão, que foi exatamente como o personagem terminou em 1990.
A gente pode tentar especular muitos cenários, mas pelo que vimos até aqui, o autor não está interessado em mudanças. É extremamente triste assistir à cena em que Zaqueu se declara para Alcides, com aquele texto penando para equilibrar a necessidade de cumprir o original e de não ser homofóbico ao mesmo tempo. E aí Zaqueu fala de amor, depois fala que não tem conotação sexual; e nisso eles impedem o personagem de se expressar sexualmente, mas também não conseguem pautar a amizade deles sem que haja uma insuficiência afetiva evidente de uma parte para a outra... É angustiante.
O mais importante: é deprimente que Zaqueu tente ser outra pessoa por um homem que nunca vai retribuir seu afeto... ou que precise cumprir códigos heteronormativos para “se sentir parte de alguma coisa”. No final das contas, aquele personagem foi criado para atribuir valores de diversidade e representatividade à trama. É uma pena que o retrato solitário e preterido do passado – que lutamos tanto para superar - ainda esteja tatuado na estrutura narrativa da novela.
Será que é possível, nessa reta final, corrigir o curso?
Está definido...
... que várias coisas em Pantanal são extremamente carismáticas. Tais quais:
- A coletividade da casa de José Leôncio. É bem bonita a forma como a casa é um ponto de abrigo para todos.
- O lúdico da onça e da sucuri. Até agora tudo muito bem usado.
- Juma Leitora: a salvação da personagem.
- Isabel Teixeira e Juliano Cazarré com a química de milhões. Ela, aliás, domina a novela.
- Tudo que é externo acontecendo ao pôr-do-sol funciona sempre.
Está a definir...
... se a lista de coisas mais pantanosas de Pantanal muda até o final da novela. Entre as coisas da lista estão:
- Irma Capeta, a coisa mais constrangedora que a novela fez até agora.
- José Lucas sendo um personagem sempre completamente dispensável.
- Guta e Marcelo ganhando até agora o framboesa de casal mais insosso.
- Muda parando de ser “mutada” na trama.
Sobre a coluna Ovo Mexido
Todo mês, a coluna fala sobre tudo que diz respeito à televisão – da aberta ao streaming – com novelas, séries e realities; um espaço para “prazeres culpados" sem culpa nenhuma.