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Sense8 deveria ser considerada tão revolucionária quanto Matrix

Enquanto a produção anterior das Wachowski revelou novas tecnologias, série das irmãs abriu olhos para diversidade humana

02.06.2017, às 19H30.
Atualizada em 03.06.2017, ÀS 11H48

Desde Matrix, as irmãs Wachowski não faziam tanto barulho com uma produção quanto fizeram com Sense8, série original da Netflix cancelada após a liberação dos episódios de sua segunda temporada. Com orçamento altíssimo, cada capítulo do segundo ano custou US$ 9 milhões e a atração foi gravada em nada menos que 13 países, mas não é nada disso que faz a série ser tão grandiosa. O que faz dela um marco é o fato de nunca antes uma produção ter se arriscado a mostrar diversidade étnica e sexual de uma forma tão sincera e ampla. Se Matrix introduziu tecnologias nunca antes vistas, Sense8 inseriu na indústria audiovisual tipos de existências humanas, de pontos de vistas e de narrativas que até então eram tratados como inexistentes.

A série girava em torno de oito protagonistas, cada um oriundo de um lugar diferente. Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre), Capheus Onyongo (Aml Ameen/ Toby Onwumere), Sun Bak (Doona Bae), Kala Dandekar (Tina Desai), Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt), Riley Blue (Tuppence Middleton) Nomi Marks (Jamie Clayton) e Will Gorski (Brian J. Smith) eram pessoas de lugares que vão desde Chicago, nos EUA, até Nairóbi, no Quênia, passando pela Coreia do Sul, Índia, México e outros. A relação entre personagens principais e coadjuvantes trouxe a diversidade cultural necessária para ser coerente com a proposta de justamente mostrar a pluralidade humana em paralelo a um vínculo que une todos os indivíduos.

A indústria audiovisual frequentemente falha ao tentar reproduzir culturas que se afastem muito do padrão ocidental por não conseguir estabelecer um limite entre retratar hábitos locais e ser caricatural. Sense8 teve a delicadeza de exibir cada um dos seus personagens imerso em sua própria cultura de forma horizontal, em uma trama onde ninguém foi retratado em posição de superioridade com base em privilégios geográficos. A série acertou ao mostrar asiáticos, latino-americanos e indianos dividindo o protagonismo em pé de igualdade com norte-americanos e europeus.

Antes ainda do enredo ou do elenco, o primeiro ponto de Sense8 em ser revolucionária é que a atração foi liderada por uma dupla de mulheres transexuais, algo incrivelmente raro na indústria do entretenimento. As Wachowski ocuparem o cargo mais alto dentro de uma produção audiovisual é uma conquista do ponto de vista da ocupação de espaços que antes era restritos ao grupo que elas simbolizam. Representatividade importa para que, vendo hoje alguém ocupando determinado lugar, amanhã não se questione mais a presença desse indivíduo lá. As irmãs não precisam mais provar a competência para ninguém, mas servem de exemplo para quem está acostumado a deslegitimar o potencial de indivíduos transexuais (ou de qualquer outra minoria social) com base em sua identidade de gênero. A presença delas lá ajuda a abrir portas para outros cineastas, produtores e roteiristas transgêneros.

E se atrás das câmeras Sense8 deu uma aula de gênero e sexualidade, na tela não foi diferente. O casal formado por Nomi e Amanita (Freema Agyeman) é extremamente significativo por quebrar uma quantidade tão grande de paradigmas que pode ter soado confuso para o espectador médio. A relação das duas ilustra com perfeição algo que muita gente ainda não entende: que identidade de gênero e orientação sexual são coisas autônomas. Nomi é uma mulher trans, ou seja, designada homem ao nascer, apaixonada por Amanita, uma mulher cis, que se identifica com o gênero ao qual foi designada. Nomi se identificar como mulher não tem nenhuma relação com o tipo de pessoa pelo qual ela se atrai - o que vai definir isso é a sua orientação sexual, que, no caso, é lésbica. De bônus, ainda temos o fato de o casal ser formado por uma mulher branca e uma mulher negra.

Além da dupla, há um casal gay formado pelos latino Lito e Hernando (Alfonso Herrera). Na segunda temporada, Capheus se envolve com Zakia Asalache (Mumbi Maina), uma jornalista bissexual. Ou seja, em seu último ano, a série apresenta representantes do todo o leque LGBT entre protagonistas e secundários. Sobre modelos de família, Sense8 apresentou pais que criaram seus filhos sozinhos (algo incomum em uma sociedade que exige da mãe a maternidade), mães criando filhos sozinhas e outros tipos de famílias não nucleares, como é o caso de Amanita, que tem três pais e uma mãe.

Revolução, de acordo com dicionários, significa "mudança profunda ou completa; subversão: revolução nos costumes, nas artes e nas ciências". Em um tempo em que a representação na mídia ainda é pasteurizada nos moldes branco, cisgênero e heterossexual, é sim uma revolução assistir uma série e ver o potencial humano ser revelado em todas suas possibilidades. Enquanto as pessoas ainda são condicionadas a entrarem em caixinhas apertadas e desconfortáveis, Sense8 é - ou foi - uma ode à infinidade de formas de existências humanas, e, gostando ou não da trama, não há como questionar isso. Um jovem que assista à série tem muito mais chance de se identificar e de entender tanto as suas diferenças quanto as dos que o cercam.

Desconsiderando o aspecto filosófico de Matrix, é claro que é mais fácil ver, entender e absorver a revolução do filme porque ela opera no nível prático: o espectador sabe que naquele filme houve um avanço tecnológico nunca antes visto que reverberou em inúmeras produções que vieram a seguir. Em Sense8, a revolução aconteceu no nível de compreender a humanidade de uma forma mais ampla. Se após Matrix, várias outras produções incorporaram as novidades do longa, depois da série das irmãs Wachowski é de se esperar que vejamos novos rostos, gêneros, orientações sexuais em produções audiovisuais.

Se Sense8, ao seu modo, representou uma revolução em determinados aspectos da indústria do entretenimento assim como Matrix fez em outros, vale ressaltar que essa não é a única semelhança entre as duas produções das Wachowski. Curiosamente, outro paralelo entre ambas não é tão positivo e diz respeito ao final - enquanto os fãs da trilogia cinematográfica amargaram uma conclusão problemática que deixou muita gente decepcionada, o público da série teve que se contentar em ver a atração ser cancelada com a história de todos os personagens em aberto. Mas não gostar do não-final de Sense8, ou mesmo da trama, não deslegitima o legado deixado pela série. As portas de diferentes cores, gêneros, orientações sexuais e culturas que já vinham lentamente sendo abertas, não podem mais ser fechadas.