Pergunte a qualquer grupo de críticos, acadêmicos e céticos sobre quais foram os principais programas que ajudaram a moldar a televisão que temos hoje em dia. Rapidamente, nomes como Família Soprano, Breaking Bad, Mad Men, House of Cards e Game of Thrones serão mencionados. Essas séries têm sido objeto de estudos e análises que exploram o impacto dos "anti-heróis brancos" e sua influência na transformação da televisão em uma forma de arte -- e toda essa ladainha que domina as discussões culturais no meio desde o final dos anos 2000. No entanto, em meio a esses debates, existe uma série que muitas vezes não recebe o mesmo tratamento, apesar de ter desempenhado um papel igualmente importante na revolução televisiva. Sex and the City, a criação de Darren Star (Melrose Place e Emily in Paris), adaptada da coluna homônima de Candace Bushnell, para a HBO, foi transgressora e ousada como poucas se arriscaram. Embora seja atualmente subestimada em comparação a outras grandes séries da era de ouro da televisão e considerada por uma nova geração como um produto que "envelheceu mal", seu legado ainda persiste, mesmo que não pareça à primeira vista.
Sex and the City está longe de ser o primeiro produto da cultura pop focado em mulheres solteiras em busca de um lugar na sociedade. Aliás, não só na televisão, mas como em geral. Em 1961, com o lançamento de Sex and the Single Girl, livro de Helen Gurley Brown, criou-se um espaço para discutir e analisar o papel da mulher na sociedade, incluindo sua sexualidade, participação no mercado de trabalho e busca pela independência. Esse livro, juntamente com os movimentos feministas da época, influenciou uma onda de séries de televisão focadas em mulheres solteiras e independentes: That Girl (1966 - 1971), The Mary Tyler Moore Show (1970 - 1977), Maude (1972 - 1978), Supergatas (1985 - 1992), Murphy Brown (1989 - 1998; 2017) e Ally McBeal (1997 - 2002) são algumas dos exemplos mais notórios. Mas as mulheres apresentadas na série com Carrie Bradshaw (Sarah Jessica Parker), Miranda Hobbes (Cynthia Nixon), Charlotte York (Kristin Davis) e Samantha Jones (Kim Cattrall) eram diferentes das predecessoras.
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Sem comerciais e papas na língua
Durante suas seis temporadas, exibidas entre 1998 e 2004, as personagens de Sex and the City enfrentaram os desafios de serem mulheres solteiras em uma sociedade que ainda esperava que elas se conformassem com estereótipos de gênero, como casar e ter filhos antes dos 30 anos. No entanto, de forma intrigante, o quarteto tanto rejeitava quanto abraçava alguns desses estereótipos: se apaixonar poderia ser tão importante quanto alcançar uma renda fixa, assim como gastar mais de U$ 40 mil em sapatos poderia ser um traço de poder tão relevante quanto ser dona de um imóvel. Essa contradição foi o que tornou Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda verdadeiras heroínas para uma nova geração de mulheres -- e homens gays -- na virada do século. À época, a televisão ainda não era tão dotada de mulheres com pura autonomia sexual, confiança e, ao mesmo tempo, com suas neuroses e inseguranças. Essa representação autêntica deve-se, em parte, ao estilo de vida aspiracional, mas realista, retratado na série. E também deve-se ao fato de Sex and the City ser produzida pela HBO, que permitia uma abordagem mais ousada e sem censura, proporcionando à série a liberdade para explorar temas e situações de forma franca, autêntica e inédita.
Como parte do catálogo da HBO, Sex and the City conquistou destaque ao lado de outras séries icônicas como a já mencionada Família Soprano, A Sete Palmos e The Wire. Essas produções foram responsáveis por abrir caminho para a segunda era de ouro da televisão, que se estabeleceu nos anos 2000 (a primeira aconteceu nos anos 1950). Ao contrário das redes de televisão tradicionais, a HBO não estava restrita às mesmas regras e limitações. Sendo um canal a cabo premium, não dependia de anunciantes ou de uma aprovação em massa do público para dar continuidade às histórias, o que permitiu uma maior liberdade criativa e ousadia por parte dos realizadores. Sex and the City ainda gozava da possibilidade de se destacar dentro desse seleto grupo, graças à sua abordagem glamorosa, feminina, frívola e divertida.
Quem se aventurava a assistir a um episódio de Sex and the City tinha que estar preparado para mergulhar em temas ousados e polêmicos. A comédia não tinha pudores em abordar assuntos como orgias, ménages, sexo anal, divórcio, infidelidade, câncer, infertilidade, aborto, brinquedos eróticos, sadomasoquismo, relacionamentos gays, morte e orgasmos -- tanto os reais quanto os fingidos. A série se destacava pela coragem em explorar cada um desses tópicos de forma original, crua e sem cair em clichês. Michael Patrick King, que assumiu a posição de showrunner após a saída de Darren Star no terceiro ano, costuma atribuir isso ao seu grupo de roteiristas, composto majoritariamente por mulheres, algo raro para a época. Em várias entrevistas, ele revelou que muitos enredos da série foram inspirados nas experiências e encontros ruins dos membros da equipe -- o que adiciona uma camada a mais de credibilidade às instabilidades e desventuras do quarteto.
Com o passar do tempo e a transformação de Nova York após os eventos de 11 de setembro, o público teve a oportunidade de testemunhar o crescimento e amadurecimento das personagens. Enquanto as três primeiras temporadas apresentavam tramas mais episódicas, os últimos três anos trouxeram arcos narrativos mais abrangentes, possivelmente influenciados pela nova atmosfera da cidade: mais sensível e retraída. Samantha, por exemplo, vivenciou situações inimagináveis: apaixonou-se por Richard (James Remar), teve o coração partido e encontrou um novo amor em Smith (Jason Lewis), tudo isso enquanto enfrentava uma batalha contra o câncer de mama. Charlotte, por sua vez, lidou com o colapso de seu conto de fadas perfeito graças a um divórcio e problemas de infertilidade. Já Miranda teve a difícil tarefa de reconhecer e aceitar que não há problema em ser vulnerável e que é possível depender dos outros -- e permitir que eles também dependam dela.
O que é surpreendente constatar, ao revisitar a série após tanto tempo, é que Carrie é a personagem que menos passa por transformações ao longo das seis temporadas. Ela começa a história centrada em si e apaixonada por Mr. Big (Chris Noth), e termina a série da mesma maneira – o que muitos consideram um retrocesso. No entanto, ao refletir sobre isso, fica evidente que Carrie, na verdade, sempre foi uma mulher egoísta, autocentrada e conhecida por tomar decisões questionáveis: ela trai Aiden (John Corbett), por exemplo, rompendo um relacionamento aparentemente perfeito, motivada por sua obsessão por Mr. Big e seus próprios caprichos. Mas é através dessa autodestruição pessoal que a personagem se destaca dos demais exemplos de protagonistas da época. Suas falhas foram sempre mais evidentes do que seus acertos, e como público, testemunhamos toda essa jornada, reforçando ainda mais a visão da personagem como uma anti-heroína de seu tempo.
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O grande elefante branco
Sim, chegou o momento de falar sobre o que mais prejudicou o legado da série – e não, não estou me referindo aos filmes ou a The Carrie Diaries. É algo que acontece de tempos em tempos: uma nova geração descobre um produto de uma época e logo parte para o ataque (movido ou não ao choque). Um exemplo disso foi quando Friends foi redescoberta por um novo público graças à Netflix. Ninguém esperava que a sitcom mais popular dos tempos modernos fosse massacrada. Da noite para o dia, Friends foi de cultuada a cancelada devido a piadas consideradas homofóbicas, racistas, transfóbicas, gordofóbicas e sexistas. Sex and the City também passou pelo mesmo tratamento.
Afinal, apesar de revolucionária em muitos aspectos, ela não deixa de ser a história de quatro mulheres brancas, cisgênero, com alto poder aquisitivo e com visões limitadas em relação aos grupos marginalizados pela sociedade. Existem sequências e até episódios inteiros difíceis de serem revistos nos dias de hoje, como, por exemplo, aquele em que Carrie namora um homem bissexual ("bissexualidade é só uma fase antes da 'homossexualidade'", disse a colunista de sexo -- veja acima). Quando Samantha decide se relacionar com uma mulher (Maria, interpretada por Sonia Braga), Charlotte rapidamente assume que a decisão foi tomada porque "ela ficou sem homens". Apesar de ser transgressora para a época, a própria Samantha cometeu atos horrivelmente transfóbicos na reta final da terceira temporada, enquanto tentava se livrar de suas novas vizinhas, um trio de travestis negras (falando nisso, eu tenho verdadeiros arrepios quando lembro dos tropeços da trama em que Samantha namora um cara negro).
Ao acompanhar as aventuras de Carrie e suas amigas em Nova York, é notável que a série frequentemente falha em retratar a diversidade cultural da cidade. Enquanto as protagonistas desfrutam de luxuosas lojas de sapatos, restaurantes badalados e ocupam cargos de destaque no trabalho, o lado multicultural da metrópole muitas vezes é reduzido a personagens em papéis de subserviência, como taxistas e funcionários domésticos, ou meros figurantes. Durante os 96 episódios, apenas dois personagens não brancos, Maria e Robert Leeds (Blair Underwood, que viveu um dos namorados de Miranda), foram desenvolvidos em algum momento. Como mencionado anteriormente, as personagens não são perfeitas e suas atitudes questionáveis em relação às minorias colocam em xeque o legado da série. É lamentável, mas importante reconhecer os aspectos que envelheceram de forma problemática - algo que até mesmo sua própria estrela já admitiu.
"É tipo Sex And The City, mas…"
Quando Girls, criada por Lena Dunham, estreou na HBO em 2012, não demorou muito para que ela reconhecesse a influência da série estrelada por Sarah Jessica Parker. Afinal de contas, como não comparar duas produções que narravam o cotidiano de um grupo de quatro amigas brancas morando em Nova York, exibidas também na mesma emissora e que ganharam rápida notoriedade graças às cenas de sexo – tidas como ousadas demais para televisão? A versão mais jovem até mesmo abraçou essa comparação inevitável. Em uma cena do piloto de Girls, há um diálogo entre Jessa (Jemima Kirke) e Shoshanna (Zosia Mamet), em que a segunda tenta resumir as características e personalidade de sua prima, usando como referência a série dos anos 90. "Você é uma Carrie com alguns aspectos de Samantha e o cabelo da Charlotte, uma combinação muito boa. Eu definitivamente me vejo como uma Carrie de coração, mas, às vezes… a minha Samantha aparece. E quando estou na faculdade, definitivamente tento bancar a Miranda", diz a personagem interpretada por Mamet. Essa discussão não se limitou apenas à criação de Dunham. Sex and the City assumiu uma grande responsabilidade na representação cultural por um longo período - e continua a ocupar esse espaço até hoje. Pouquíssimas produções surgiram desde então que tenham aberto caminho para uma debate sobre "ser uma Samantha ou uma Miranda", por exemplo.
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Sex and the City raramente recebe o reconhecimento da crítica "cartola e monóculos", que costuma elogiar séries como Família Soprano como infalíveis. No entanto, nem mesmo a criação de David Chase teve um legado comparável – comercialmente falando, claro. Por exemplo, o filme Os Muitos Santos de Newark, que narra as origens de Tony Soprano, passou despercebido nas bilheterias, arrecadando apenas US$ 13,03 milhões (contra um orçamento de US$ 50 mi). Enquanto isso, os filmes de Sex and the City, juntos, encheram os cofres da HBO com mais de US$ 700 milhões. Sucesso comercial é uma coisa e sucesso crítico são coisas bem diferentes, eu sei. No entanto, é inegável que a comédia romântica, por ser mais acessível, alcançou um público maior do que séries como The Wire, Mad Men e até mesmo Succession, para citar um exemplo mais recente. Essas séries são, sem dúvida, importantes e influentes, mas falharam em atingir um público amplo.
Enquanto isso, Sex and the City conseguiu ser ambas as coisas: teve um impacto cultural significativo e também foi amplamente reconhecida pela indústria. A série conquistou prêmios importantes, como o Emmy de Melhor Comédia em 2001, tornando-se a primeira comédia da TV a cabo a receber essa honraria, além de inúmeros Globos de Ouro e outros troféus. Seus filmes continuam exibidos nas emissoras de TV a cabo – para o desgosto dos fãs mais puristas. Existem inúmeros podcasts dissecando a série, e fanpages no TikTok e Instagram que analisam cada frame das conversas entre as quatro amigas de Nova York. Há também ensaios acadêmicos, teses e mais livros que se dedicam ao estudo dessa comédia, que segue como presença real e vívida no imaginário do público – tudo isso sem nem precisar fazer menção ao revival para HBO Max, And Just Like That… (ainda bem).
Não é exagero dizer, também, que a TV seria muito diferente hoje se Sex and The City não tivesse existido. Por seu enorme sucesso, estúdios e executivos passaram a demonstrar maior interesse em aprovar programas centrados em mulheres, um fenômeno que desencadeou uma onda de produções, desde Desperate Housewives até Big Little Lies e Fleabag, passando por dramas mais densos como Homeland, Bad Sisters e Grey's Anatomy, e ganhando versões com maior representatividade como Insecure, Harlem e Girlfriends. Seu impacto ultrapassou os limites da indústria televisiva e se estendeu para a cultura pop em múltiplos aspectos. Transformou suas atrizes em ícones e musas e chegou até mesmo impulsionar as vendas dos produtos mostrados em episódios, como o vibrador do coelho.
A série foi um produto corajoso de seu tempo, representando uma aposta ousada por parte de uma emissora que estava explorando a produção de conteúdo original nos anos 1990. 25 anos depois de sua estreia, Sex and the City continua relevante e não perde o seu estilo -- seja ele com ou sem um par de Manolo Blahniks.
Onde ver Sex and the City?
As seis primeiras temporadas de Sex and the City estão no catálogo da HBO Max, assim como os dois longa-metragens, Sex and the City (2008) e Sex and the City 2 (2010).
A primeira temporada do revival, And Just Like That..., também está na plataforma. A segunda temporada estreia em 22 de junho.
The Carrie Diaries é o único produto da franquia que não está disponível no Brasil.