Em um de seus monólogos no teatro, Patrick Stewart apresentou trechos dos personagens mais marcantes de sua carreira. Estavam lá, Shylock, Oberon, Henrique IV e outros, simbolizando anos de trabalho nos palcos, em especial na respeitada Royal Shakespeare Company, onde atuou ao lado de Ben Kingsley e Helen Mirren. Mas era o último personagem que fazia o teatro vir abaixo. Proibido de usar o figurino do personagem, Stewart limitava-se a segurar a barra do suéter e “acertar” a roupa. Não era preciso dizer nada. O gesto era típico de Jean-Luc Picard, Capitão da Enterprise em Star Trek: A Nova Geração. E o aplauso, um trabalho de conquista de um público que, esperando um novo Kirk, ganhou um personagem muito diferente. Graças ao seriado, o ator ganhour o econhecimento que o público não dá a carreiras teatrais, mesmo as mais brilhantes, e degrau para outra franquia, a dos filmes da Marvel como Professor Charles Xavier.
Voltar à TV com Star Trek nunca esteve longe da mente do criador da série, Gene Roddenberry, caminho desviado para o cinema pelo sucesso de Star Wars. O anúncio da nova produção chegou a ser planejado para a festa de comemoração de vinte anos de Star Trek, mas alguma pessoa de bom senso chegou à conclusão de que o elenco original, que estaria presente, não se sentiria exatamente feliz por saber que em breve não seria a única tripulação da Enterprise. Outro descontente foi o próprio Roddenberry, que rejeitou a ideia da icônica tripulação ser substituída por um grupo de cadetes.
Mas não seria uma premissa rejeitada que impediria a Paramount de seguir em frente com o projeto de uma nova Star Trek na TV enquanto a tripulação original seguia com suas aventuras no cinema. O mesmo, aliás, que acontece agora, com a nova série Discovery em streaming enquanto a franquia segue com Chris Pine como Kirk no cinema. Assim como agora, nos anos 80 o racional era de que se tudo desse certo, o estúdio teria uma marca gerando lucro em duas mídias. Se a série afundasse na TV, os longas no cinema manteriam o nome Star Trek gerando bilheteria. Assim, em dez de outubro de 1986, Mel Harris, presidente da Paramount Television anunciou oficialmente a produção de uma nova série. Além de Roddenberry como produtor-executivo, a equipe no comando tinha três nomes saídos direto da série original, Edward K. Milkis, Robert H. Justman e David Gerrold.
Autor do livro The World of Star Trek, Gerrold apontou em sua análise uma incongruência na série original: um capitão, fosse de uma nave ou de um porta-aviões, jamais se colocaria em perigo arriscando deixar a tripulação acéfala em um momento de crise. Sem ter uma nova série em mente quando fez sua análise, Gerrold acabou definindo o formato de comando e a escalação do novo capitão. Na nova ponte, o trabalho de campo ficaria com um primeiro oficial, enquanto o capitão seria alguém experiente, promovido após longo crescimento pessoal e profissional. Figura-chave na série original, Justman seria responsável por encontrar o ator ideal de forma tipicamente hollywoodiana. Em outras palavras, fora dos testes e por influência do destino. Em outubro de 1986, Justman, a esposa e o filho foram a um curso sobre humor na Universidade da Califórnia. O convidado responsável por fazer leituras de comédias de Shakespeare e Noël Coward era Patrick Stewart, ator britânico com décadas de experiência nos palcos e alguns papeis no cinema, entre eles Leondengrance em Excalibur e Gurney Halleck em Duna.
A apresentação deixou Justman convencido de ter encontrado o homem para interpretar o capitão da nova série, mas Roddenberry detestou o candidato. A queda de braço continuou com Justman, a diretora de elenco Junie Lowry e o produtor Rick Berman defendendo a escalação, enquanto Roddenberry mantinha sua ideia de um francês viril e com uma bela cabeleira, chegando ao ponto de perguntar à sua assistente se as mulheres se sentiriam atraídas pelo ator britânico. E usou a resposta dela de que Stewart não era sexy como mais um motivo para recusar o ator. Só poucas semanas antes do início das filmagens do piloto a maré mudou e Roddenberry despachou Stewart para aprovação dos executivos da Paramount.
Havia dúvidas quanto o sucesso de Star Trek: A Nova Geração quando a série estreou em 26 de setembro de 1987, mas na tela ninguém questionava que Picard era o capitão. Dono de um talento incontestável, postura e voz cheias de autoridade, Stewart imbuiu o personagem da aura de confiabilidade e liderança capaz de levar uma tripulação ao máximo de seu desempenho. Fora da tela, a história era outra. Nos Estados Unidos, o Los Angeles Times relatou que o personagem era interpretado por um “desconhecido ator shakespeariano britânico”. Na Inglaterra a posição foi resumida anos depois por uma frase publicada no Evening Standard dizendo que Stewart havia sido a coluna vertebral da Royal Shakespeare Company antes de trocar o teatro clássico para “voar pela TV num traje espacial absurdo”.
A situação a princípio não preocupava Stewart, que só assinou o contrato após consultar alguns conhecidos que lhe garantiram que A Nova Geração não faria sucesso. O fracasso o livraria de ficar seis anos preso a um só personagem e ele ainda sairia do projeto com algum dinheiro e um bronzeado californiano. O cenário era tal que Stewart trabalhou durante toda a primeira temporada, que incluiu uma greve de roteiristas, a demissão de Gates Mcfadden, intérprete da Dra. Crusher, e a saída de Denise Crosby, a tenente Tasha Yar, preparado para voltar à Inglaterra. Mas, passada a tormenta, Stewart entusiasmou-se pelo trabalho e pelo legado de Star Trek, atribuindo ao papel o máximo de complexidade possível em uma produção em ritmo industrial. Concluindo ainda que o trabalho numa série de longa duração era similar ao de uma companhia teatral, Stewart assumiu a liderança do elenco e da equipe técnica, tornando-se o porta-voz de todos perante o estúdio.
Sete temporadas depois, quando Star Trek: A Nova Geração encerrou sua passagem pela TV e seguiu para o cinema, a história de como alguém teve de ser convencido da escalação de Patrick Stewart soava absurda. A série que a indústria apostava que daria errado provou ser possível criar novas fases de programas icônicos. Não houve dúvidas quanto a quem deveria interpretar Xavier em X-Men e em sua volta ao teatro britânico, Patrick Stewart recebeu elogios retumbantes por trabalhos como Hamlet ao lado de David Tennant, e foi considerado o melhor Macbeth já visto pelos mesmos críticos que o condenaram quando se rendeu à TV americana. Onde, ao contrário do que a assistente de Roddenberry achava, também ganhou o status de sex symbol.