Disney+/Divulgação

Séries e TV

Artigo

Mandalorian homenageia O Comboio do Medo em episódio inspirado

Segunda temporada se aproxima do fim revivendo dias de guerra

11.12.2020, às 19H15.
Atualizada em 18.12.2020, ÀS 17H24

William Friedkin vinha de dois sucessos validados pela Academia do Oscar, Operação França em 1971 e O Exorcista em 1973, quando ele lançou O Comboio do Medo em 1977. É um dos melhores filmes do cineasta, mas o azar de estrear na mesma época de Guerra nas Estrelas não ajudou nas bilheterias este suspense tenso sobre uma missão suicida envolvendo cargas explosivas. Que ironia então que justamente Star Wars venha agora homenagear Friedkin com um episódio de The Mandalorian que basicamente refilma O Comboio do Medo.

Friedkin não teria muito o que reclamar, afinal o seu próprio filme é um remake de O Salário do Medo, o clássico de Henri-Georges Clouzot de 1953. Os dois filmes se passam nas florestas da América Latina, onde um grupo de párias aceita transportar uma carga de nitroglicerina em terreno acidentado, e a cada balanço dos caminhões uma nova ameaça de explosão aflige os aventureiros. Não é só essa premissa que Mandalorian aproveita no episódio “The Believer”, mas também as trocas tensas no refeitório (nos filmes essa cena vem no começo, na hora das negociações da encomenda) e a ambientação tropical. Uma diferença é que Star Wars cria um planeta pra isso, Morak, e troca dinamite pelo fictício rhydonium.

Outro paralelo importante, que certamente não escapou ao roteirista e diretor Rick Famuyiwa neste episódio, é que tanto O Salário do Medo quanto O Comboio do Medo usam a aflição do subtrabalho perigoso para comentar a precariedade da existência sob regimes de exploração e desigualdade. Pois não é diferente em Mandalorian, que tem a capacidade de, em pouco mais de meia hora, transformar totalmente a imagem que fazemos de Migs Mayfeld. De bandido chato e verborrágico (persona que o ator Bill Burr assume frequentemente, pelo menos desde Breaking Bad), ele se torna o portador de um forte discurso anti-imperialista, e aceitamos Mayfeld como nosso justiceiro, sim, porque afinal o universo de Star Wars sempre foi bom mesmo de anti-heróis e cavaleiros solitários fora-da-lei.

Esse discurso é suficiente para tornar o episódio especial. Chegamos ao final da segunda temporada, e a essa altura do campeonato não dá pra esperar que Mandalorian se engaje em arcos narrativos mais longos ou complexos. No mais, as brincadeiras com homenagens ao cinema (faroestes, histórias de samurai, agora o suspense de febre na selva) oferecem novidades a cada semana, e esse pastiche de gêneros está no DNA de Star Wars desde o primeiro dia.

No fim, parece justo que a ideia seja mesmo encapsular missões como esta em Morak, com começo, meio e fim, de uma forma que o episódio não pareça um filler e sim uma historinha fechada com algo a dizer. À medida em que os vilões se reorganizam às raias da Primeira Ordem mostrar a cara, faz todo o sentido que personagens relembrem como é a vida sob o jugo do Império, que ventilem seus rancores e suas vinganças pessoais. Ver os pobres stormtroopers cheios de lama comemorando uma pequena vitória num planeta tropical perdido é suficiente para nos recontextualizar e dar novas camadas a essa velha disputa do bem contra o mal.

Em sua autobiografia, Friedkin se pergunta porque a crítica não recebeu O Comboio do Medo muito bem em 1977. “Uma combinação de coisas, com certeza. Star Wars, com sua fantasia de heróis e vilões claramente definidos, tinha mudado o gosto do público. O Comboio do Medo era apresentado como a realidade sem filtros, os quatro protagonistas eram fugitivos da justiça. E além de ser ambíguo o final era depressivo”, escreve o cineasta. Bem, com algumas exceções pontuais, Star Wars não abre mão dos finais otimistas, mas Mandalorian honra o filme de Friedkin na nossa torcida pelos mercenários que transitam entre os dois lados da lei e tornam o maniqueísmo mais cinza.