Fiona Dourif se lembra do seu primeiro dia no set de A Maldição de Chucky como uma das experiências mais surreais de sua vida. Como ela contou em entrevista ao SlashFilm, as produções da franquia usam um processo incomum para que os atores de carne e osso interajam de forma convincente com o boneco assassino no centro da trama - um animatrônico bastante articulado é usado em todas as cenas, enquanto a voz de Brad Dourif (dublador do personagem desde o primeiro filme, de 1988), que grava todas as suas falas com antecedência, é tocada pelos altos-falantes do set.
O problema é que Fiona Dourif não é só mais uma atriz no rol infindável de vítimas atormentadas pelo boneco - ela é a “filha de Chucky” da vida real. Nascida em outubro de 1981, na cidade interiorana de Woodstock (Nova York), Fiona é fruto do casamento de Brad e Jonina Dourif. “Quando ia filmar minha primeira cena com Chucky, pedi a Don [Mancini, criador da franquia] que não tocasse a voz do meu pai nos altos-falantes, porque seria uma distração. Mas ele se recusou!”, revelou.
“Eu amo o meu pai. Ele é, honestamente, uma das pessoas mais gentis, ainda que estranhas, que você pode conhecer. Não há nada de assustador nele. [...] Mas foi muito enervante ouvir a voz da pessoa que me confortou e acolheu por toda a vida dizer: ‘Eu quero te matar, p*rra’. Pessoalmente, foi uma experiência aterrorizante, o que ajudou muito minha performance”, completou.
Hoje, isso é só um dia normal de trabalho na vida da atriz. A Maldição de Chucky revitalizou a franquia e apresentou seus prazeres queer para toda uma nova geração, gerando uma continuação (O Culto de Chucky) em 2017, e agora uma série de TV, intitulada apenas Chucky, recentemente renovada para segunda temporada. Rapidamente, Fiona se tornou parte tão indissociável da franquia quanto o seu pai ou Jennifer Tilly, intérprete de Tiffany Valentine - e a nova série é a melhor demonstração até agora do porquê.
Em Chucky (spoilers - leves - a seguir!), Fiona interpreta ao menos três personagens. Primeiramente, ela é Nica Pierce, a mulher paraplégica que o boneco assassino persegue desde A Maldição, traumatizada e assustada pelos rumos que sua vida tomou desde então; depois, ela é o próprio Chucky, que se apossou do corpo de Nica no final de O Culto, após aprender um feitiço que o permite dividir sua alma em vários pedaços; e, por fim, ela se transforma, com a ajuda de uma maquiagem prodigiosa, em Charles Lee Ray, o assassino em série que viria a se tornar Chucky, em flashbacks dos anos 1980.
Algumas das cenas mais divertidas da série acontecem quando ela se afasta temporariamente dos adolescentes que a protagonizam para mostrar as desventuras de Nica, cuja consciência ainda sobrevive dentro do corpo possuído por Chucky. Fiona claramente se diverte imitando os trejeitos do pai, da dicção particular que ele assume quando dubla o boneco assassino à linguagem corporal estabanada e o sorriso malvado de canto de rosto - mas ela também empresta gravidade emocional para os momentos em que Nica consegue recobrar controle do seu corpo, nos lembrando que ela é tão parte do grupo de outsiders que Chucky vitimizou durante sua trajetória cinematográfica quanto o Andy de Alex Vincent ou os novos protagonistas da série.
Fiona Dourif irreconhecível como Charles Lee Ray em Chucky (Reprodução)
“Eu me sinto muito sortuda por ser paga para simplesmente deixar a minha imaginação voar, e pensar em como seria sentir a sua alma se esvaindo do seu corpo pelo topo da sua cabeça e ser substituída por outra. É um exercício muito divertido”, definiu a atriz ao SlashFilm. Adicione aí a experiência sem dúvida surreal de dar vida a uma versão mais jovem do próprio pai - como o Charles dos anos 1980, mesmo por baixo da maquiagem, Fiona dá dimensão e humanidade (sem abrir mão da maldade) a um homem que o próprio Brad Dourif só pôde interpretar por poucos minutos, antes de ser confinado à dublagem de um brinquedo homicida.
Para quem acompanha Fiona fora da franquia Chucky, é curioso ver o quanto ela se encontrou nesse personagem “hereditário” - mas não exatamente chocante. Após estrear em 2005, na série Deadwood (interpretando uma prostituta), a atriz sempre brilhou um pouco mais ao ser escalada para tipos excêntricos, que a permitiam “devorar cenários” e criar trejeitos próprios, mas também encontrar o caminho para o coração do espectador com sua sensibilidade insuspeita.
Daí o brilhantismo de sua performance em Dirk Gently’s Holistic Detective Agency (disponível na Netflix) na qual interpretou a assassina de aluguel Bart Curlish, com sua aparência permanentemente suja e sua profunda, às vezes genuinamente comovente, necessidade de conexão humana; ou o seu retrato preciso da Rat Woman, um dos personagens mais grotescos saídos da imaginação de Stephen King, na minissérie de The Stand (no Paramount+). Fiona, filha do ator que criou um dos vilões mais carismáticos do cinema, conhece muito bem o charme especial de um monstro bem interpretado.
Fiona Dourif como Bart Curlish em Dirk Gently's Holistic Detective Agency (Reprodução)
Mas não pense que ela deixa de lado a faceta perigosa de seu personagem mais recente. “É muito divertido interpretar Chucky, e aqui está o motivo: ninguém é mais livre do que ele. Quer dizer, ele tem muito medo de morrer e ser esquecido - mas, fora isso, é confiante e capaz de qualquer coisa. Chucky está sempre se divertindo à beça, sempre vivendo nos limites que alguém pode viver. E essa é uma forma muito prazerosa de se andar pelo mundo”, refletiu a atriz, completando após uma pausa maliciosa: “Mesmo que envolva assassinar algumas pessoas”.
Chucky é exibida no Brasil pelo Star+, com episódios novos todas as quartas-feiras.