Há até bem pouco tempo atrás, o gênero harém era a fórmula certeira para conquistar o sucesso em uma produção no meio otaku. Seja anime, mangá, visual novel ou o quê, um protagonista banana rodeado de belas mulheres sensuais de personalidades fortes norteou boa parte da indústria, e séries como Love Hina, Nisekoi e outras são lembradas com muito carinho. Mas se o gênero é tão “infalível” assim, por que World’s End Harem, da atual temporada de animes, ficou por fora dessa recepção positiva? Ou melhor, como World’s End Harem conseguiu sabotar sua própria produção?
Um Romântico no Apocalipse Sexual
Um meme que viralizou na internet brasileira em 2019 trazia um rapaz musculoso sentado em um sofá tomando uma taça de vinho (!?), e o texto dizia "Parece ironia querer viver um amor no século da p*taria". Acredite ou não, esse é o mais perfeito resumo de World's End Harem, criação de LINK e com ilustrações de Kotaro Shouno. Com um relativo sucesso editorial veio o anúncio de um anime, mas ninguém esperava que o resultado fosse desagradar a gregos e troianos.
Mas vamos por partes. A trama começa quando o protagonista Reito Mizuhara descobre ter uma doença ainda sem cura. Felizmente ele mora em um futuro de ficção científica, então os médicos decidem colocar o rapaz em sono criogênico até a invenção da cura dali alguns anos. Abandonando familiares, amigos e seu crush de infância, Reito se deita na cápsula e torce para despertar em um cenário melhor.
Infelizmente isso não acontece, porque cinco anos depois interrompem sua criogenia para trazer uma péssima notícia: o mundo está em pandemia. Um perigoso vírus chamado MK, capaz de exterminar pessoas do sexo masculino, se espalhou pelo mundo e somente 5 homens no mundo são imunes ao seus efeitos. Como é possível deduzir, Reito é um desses caras donos de uma genética favorável. Se World’s End Harem fosse uma série de ficção científica comum teríamos Reito ajudando nas pesquisas para desenvolver uma cura para o vírus e assim conseguir retirar milhões de homens de suas criogenias preventivas, mas não é o caso.
Esse anime é um harém, então a tarefa de Reito é ser um animal reprodutor, tendo relações sexuais com a maior quantidade possível de mulheres nesse mundo apocalíptico para evitar o fim da humanidade. Como manda a cartilha da Jornada do Herói, o protagonista rejeita a proposta pois quer encontrar sua namoradinha, atualmente desaparecida. Enquanto prossegue com as investigações, Reito passa a ser assediado por qualquer criatura feminina que respira nesse mundo.
O primeiro episódio de World's End Harem é capaz de provocar gargalhadas, tamanha a quantidade de sandice em suas cenas. Em uma delas, Reito sai de perto de suas seguranças e caminha por uma rua do Japão. Tal qual num filme de zumbis de George Romero, as mulheres ficam completamente enlouquecidas pelos ferormônios e saem desesperadas pela mínima possibilidade de sexo. Aliás, as personagens femininas são quase todas dotadas de um fogo sobre-humano e atributos frontais que provocariam fortes dores na coluna de qualquer pessoa real. Qualquer cena é uma nova desculpa para alguma mulher roçar os seios ou roubar um beijo bem melado do protagonista.
Uma descrição como essa faz World’s End Harem parecer uma paródia de filme sobre uma pandemia de qualquer vírus, mas as coisas mudam bem rápido. Rapidamente qualquer tentativa de ficção científica é abandonada em prol de uma pegação sem limites entre mulheres todas esbeltas. Poderia ser o sonho de qualquer otaku em busca de um roteiro com pitadas de ecchi, mas não foi o que aconteceu.
World’s End Harem não parece ter conquistado a atenção do público otaku em geral. A nota do anime é baixa em sites como My Anime List e até na própria plataforma oficial de streaming, a Crunchyroll. Mas, afinal, qual foi o erro deste anime? Para entender, vamos precisar voltar no tempo e discutir sobre o gênero harém nas produções de anime e mangá.
As origens do harém
Embora seja um gênero bastante difundido entre entusiastas, o início dos haréns na cultura otaku é uma história nebulosa. Uma parcela dos que tentam encontrar o pioneiro do gênero aposta em Urusei Yatsura (1978) como primeiro grande representante, isso em uma era pré-convenção dos principais clichês. Na história criada por Rumiko Takahashi (e que terá um anime novo ainda em 2022) acompanhamos as desventuras de Ataru Moroboshi, um jovem pervertido nomeado como o representante da Terra para enfrentar uma raça alienígena em uma partida de pega-pega. Esse é apenas o pontapé da trama, que aborda com muita comédia um triângulo amoroso formado entre Ataru, sua namorada Shinobu e a alienígena espalhafatosa Lum.
Na década seguinte, duas séries são lembradas por terem pitadas das comédias de harém como conhecemos atualmente. A primeira é Ranma ½ (1987), também de Rumiko Takahashi, com a história de Ranma Saotome em busca da cura da maldição que o transforma em mulher quando banhado com água fria. Embora ele tenha uma noiva arranjada pela família, Akane Tendo, de tempos em tempos surgiam mais e mais candidatas ao coraçãozinho do lutador. E não havia restrição de gênero: rapazes também iam aparecendo em busca do coração da versão feminina do protagonista. Kimagure Orange Road (1988) também é lembrada como precursora por conta dos complexos polígonos amorosos.
Mas se não dá pra cravar nenhuma dessas séries como o primeiro harém, muitos creditam Tenchi Muyo! Ryo-Ohki como o responsável por popularizar o gênero. Exibido brevemente no Brasil pela Band e Canal 21, essa série lançada diretamente para o mercado de home vídeo é protagonizada por Tenchi Masaki, um rapaz que vê sua vida mudar quando diversas alienígenas aparecerem querendo conquistar seu coração. Um dos principais pontos do harém, o fato do protagonista ser meio frouxo ou sem utilidade, já aparece no próprio título da série: Tenchi Muyo em português seria algo como “Tenchi, o Inútil” (ou “Sem Necessidade para Tenchi”). Esse tipo de personagem é fundamental para um harém, pois o protagonista masculino é quem o público precisa se identificar, então quanto menos forte ou determinado temos mais chances de um espectador mais tímido encontrar semelhanças.
Mas o sucesso por trás de Tenchi Muyo veio por conta de seu rol de personagens femininas carismáticas. A pirata espacial Ryoko cumpre a função de mulher determinada, a princesa Aeka ocupa o posto de garota recatada de personalidade forte, a cientista maluca Washu representa a personagem madura, a policial Mihoshi é o alívio cômico atrapalhado e, por fim, a garota Sasami representa o amor mais “fraternal”. É importante comentar que, ao contrário das séries televisivas de Tenchi Muyo mais focadas em Ryoko e Aeka, na série de OVAs todas as garotas são profundamente apaixonadas pelo rapaz com rabinho de cavalo.
Tudo o que conhecemos de animes harém bebeu da excelente repercussão de Tenchi Muyo, inclusive as personalidades das garotas. O gênero permite qualquer tipo de roteiro, desde que ele sirva como desculpa para colocar um protagonista meio Tenchi rodeado por lindas donzelas, e nas últimas décadas passamos por premissas como “herdeiro da máfia se relacionando com garota da gangue rival” (Nisekoi, 2011), “garoto se apaixona por garota com calcinha de morangos” (Ichigo 100%, 2002) ou até mesmo “rapaz bruxo de 10 anos de idade se transforma em professor em escola feminina e participa de lutas em que precisa beijar suas alunas” (Negima!, 2003).
Mesmo a sinopse mais aleatória tem chance de êxito se oferecer um protagonista avatar do leitor, garotas com personalidades e bastante insinuação de erotismo.
O problema do harém do fim do mundo
Nenhum gênero se mantém intacto durante muito tempo, e o harém foi se desmembrando para atender alguns nichos. Para um público mais amplo e jovem, The Quintessential Quintuplets (2017) ofereceu uma ótima comédia romântica pouco parecida com a apelação de outras histórias citadas, já Highschool DxD (2008) apostou em sensualidade para agradar quem ansiava por uma trama mais quente. World’s End Harem é um representante da ala mais picante do gênero, e talvez tenha sido esse o prego no caixão.
Pra começar, a versão que estamos acompanhando e World’s End Harem é censurada, e as cenas de nudez e sensualidade são todas eclipsadas por manchas pretas, como se fosse um vídeo hackeado. É normal recebermos versões censuradas de animes, vide as cenas gore de Jojo’s Bizarre Adventure ou o manji de Tokyo Revengers, mas nada tão chamativo quanto a decisão artística por trás do tapa-sexo de World’s End Harem. E pior: os elementos censurados nesses exemplos são apenas alguns detalhes, e não a principal justificativa de existência do anime.
Tirando as cenas sensuais e a apelação sexual, nada se salva em World’s End Harem. No decorrer dos episódios as cenas sem sentido vão perdendo qualquer resquício de humor e se tornam apenas desconfortáveis por conta dos assédios. Confesso ter ficado bastante perturbado em vários momentos nos quais as mulheres não aceitavam um “não” e forçavam o protagonista a praticar algo contra sua vontade.
A série até tenta abordar os vários lados de uma pandemia dedicando episódios a outros sobreviventes do vírus MK, mas a tentativa de diversificar a trama é apenas uma nova forma de irritar o espectador com outras abordagens equivocadas. Parte do elenco exala uma forte energia incel pela forma como tratam as mulheres com desprezo, e a questão da misoginia já foi inclusive denunciada por espectadores japoneses do anime.
No fim, World’s End Harem é um projeto que não se sustenta. Quem busca sensualidade vai encontrar muitas tarjas, e quem procura uma ficção científica sobre um vírus capaz de dizimar a humanidade vai se frustrar com os desdobramentos sem sentido e com a história rasa. Pelo menos World’s End Harem conseguiu a proeza ser rejeitado tanto pelos fãs quanto pelos haters, o que, no fim das contas, não deixa de ser um fenômeno impressionante.
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Caso essa matéria não tenha te assustado e você queira se aventurar pelo mundo de World’s End Harem, o anime está sendo lançado semanalmente pela Crunchyroll. Caso queira conhecer a origem do gênero harém, aproveite que Tenchi Muyo! Ryo-Ohki tem suas primeiras partes disponíveis na Funimation.