A arte de se divertir com animes e mangás ruins

Créditos da imagem: Reprodução

Mangás e Animes

Artigo

A arte de se divertir com animes e mangás ruins

Eles não têm história coerente, mas eles têm o povo! Como explicar a diversão proporcionada por tramas capengas?

Omelete
10 min de leitura
14.09.2022, às 17H06.
Atualizada em 14.09.2022, ÀS 18H08

Nas últimas décadas a indústria dos animes foi capaz de criar histórias fascinantes e encantadoras… mas não todas. Os Cowboy Bebop e Fullmetal Alchemist Brotherhood que me perdoem, mas a maioria das produções feitas ano após ano no Japão são séries medianas e alguns animes péssimos. Não que isso seja um problema!

O que acontece quando gostamos de um anime ruim? É algo que precisamos esconder das pessoas? Qual é a utilidade de um anime cujas qualidade estão lá no pré-sal? Com o lançamento (e a discussão) causada pela chegada de Bleach: Thousand-Year Blood War, talvez seja a hora de conversarmos sobre esse apreço que sentimos por histórias não tão boas assim.

O retorno do Shinigami

No último domingo (11) a internet foi surpreendida pelo trailer de Bleach: Thousand-Year Blood War, a mais nova série do ceifeiro de almas feita com o objetivo de adaptar todo o arco final da franquia, inédito em anime. A reação dos fãs, por motivos óbvios, foi muito positiva. Ichigo Kurosaki está mais estiloso do que nunca, com um character design respeitando toda a estética do autor Tite Kubo, e a própria animação se utiliza dos mais modernos recursos da computação gráfica para deixar aquela animação em 2D com carinha de longa-metragem. A celebração foi gigante, mas isso ofuscou um detalhe importante sobre essa estreia: por que Bleach está voltando só agora, 10 anos após o final do anime original?

Se no começo dos anos 2000 Bleach era um dos pilares da revista Shonen Jump, uns dez anos depois a série se tornou aquela bicicleta ergométrica transformada em um cabide. O mangá ainda era sustentado por fãs empolgados com o desenrolar das aventuras dos shinigamis, mas eles foram minguando. Em meados de 2012 o estúdio Pierrot (o mesmo de Naruto) decidiu que não era mais interessante continuar com o anime, e encerrou a história por ali mesmo sem um final.

O autor Tite Kubo até havia prometido (ou “ameaçado”, se preferir enxergar dessa forma) manter a história de Bleach por mais 10 anos na Shonen Jump, mas não conseguiu cumprir a meta. Ichigo e Rukia conseguiram ainda sentar muita porrada em inimigos em quadros estilosos sem cenário de fundo, mas o mangá acabou encerrado em 2016 após anos marcando presença cativa nas posições mais baixas da popularidade da Jump. Bleach acabou com 74 volumes encadernados.

Esse período de “ausência” fez bem para Bleach. Nesse intervalo de tempo a nostalgia e o valor sentimental fizeram seu trabalho e ele se tornou aquele amigo do passado com quem temos boas lembranças. Esse sentimento levou a novos projetos, como um longa-metragem com atores de carne e osso e um derivado chamado Burn the Witch (cuja ligação com a série original só foi revelada no final do capítulo piloto da história), mas mesmo assim é curiosa a decisão de animar o Thousand-Year Blood War, pois é como se os produtores estivessem esperando os fãs esquecerem o arco tão criticado para lançá-lo com uma animação bonita para "disfarçar" os buracos no roteiro.

Divulgação

Mas enquanto alguns vibravam com as espadadas e os ângulos que teremos no anime, houve quem sentisse a necessidade de lembrar que o Thousand-Year Blood War é muito aquém de todo o resto do mangá. Com o anime logo aí virando a esquina, será mesmo um problema o fato desse arco final de Bleach ser péssimo?

Animes e "Guilty Pleasure"

Existe um termo em inglês criado para definir o apreço real por produções ruins. “Guilty Pleasure” seria algo como um “prazer com culpa”, aquela coisa na qual conscientemente você sabe da qualidade ruim, mas de alguma forma você gosta daquilo. Qualquer coisa pode ser o seu guilty pleasure, seja uma música popular, uma novela mexicana dos anos 1990 ou um programa televisivo com famosos dublando outros artistas.

Nosso gosto por um anime não é matemático, não vem de um combo certeiro de bela animação e excelente história, até porque o conjunto de elementos que torna um anime excelente é impossível de ser algo planejado. Somos atraídos pelas séries que mais gostamos por motivos subjetivos, seja pela identificação com um personagem ou mesmo reconhecer que tudo aquilo é ruim a ponto de conseguirmos levar para o lado do humor. Um anime com péssima animação, história e interpretação pode ser apreciado? Claro que sim!

Ano passado escrevi aqui para o Omelete uma matéria sobre o anime EX-ARM, uma produção lançada pela Crunchyroll em janeiro de 2021. Essa série foi descrita como um acidente de carro, algo terrível e impossível de não olhar. Nada ali funcionou: as interpretações são risíveis, a história é repleta de decisões equivocadas de roteiro e a animação em 3D parece ter sido produzida pela equipe das propagandas do Dollynho. O fato de ainda ter sido dirigido por um profissional que nunca trabalhou com animes fez com que EX-ARM se tornasse o melhor anime de comédia da temporada, mesmo que de forma involuntária. Tudo era muito mambembe, mas também muito divertido.

Mas não apenas animes terríveis como EX-ARM podem ser considerados guilty pleasures, esse é um caso extremo. Hoje temos a impressão de que somente animes muito bem animados como Jujutsu Kaisen ou Demon Slayer conquistam os fãs, mas às vezes algum anime mais “desengonçado” consegue seu lugar ao sol. Orient e Tokyo Revengers são produções com qualidades técnicas bastante limitadas, mas que atraem os fãs pelo carisma dos personagens. Por outro lado, uma história bem recebida não é capaz de sozinha segurar uma produção mediana, como vimos em Record of Ragnarok e Lucifer and the Biscuit Hammer.

Produzindo conteúdo sobre anime ruim

Um anime ruim pode provocar diversos sentimentos em quem assiste, varia da pessoa. Assim como é possível achar graça na “ruindade” da produção, às vezes um anime ofende sua inteligência de forma quase pessoal e acompanhar cada episódio se torna um martírio. Essas várias reações ficaram bem evidentes quando conversei com algumas pessoas que, de forma proposital ou não, se expuseram a animes de qualidade bastante questionável para produzir conteúdo na internet.

Conhecido pelo podcast Kitsune da Semana do portal Geek Here, Leonardo Kitsune pode ser considerado um homem forte. Com o objetivo de trazer análises profundas para seus espectadores, o crítico já foi colocado para acompanhar mangás e animes péssimos como King’s Game The Animation. Para se ter uma ideia da ruindade desta produção, essa série é a continuação animada de um mangá que não foi adaptado para anime, então essa continuação mesclou a nova história com flashbacks da anterior, uma confusão de baixíssima qualidade e coerência.

Reprodução

Talvez por causa do trabalho como crítico, Kitsune acaba tendo uma visão quase educacional sobre animes ruins. “Antes de mais nada, anime ruim é sempre uma lição. É sempre bom ver algo realmente ruim para aprender o que não fazer, e valorizar os animes bons de verdade”, refletiu. Um fator importante, afinal avaliações nascem de comparações, e quanto maior a quantidade de animes assistidos você se torna mais capaz de analisá-los e classificá-los.

Quando perguntado se era possível se divertir com animes ruins, Kitsune considerou “diversão” uma palavra forte, e enumerou as gradações possíveis de um anime ruim. “Tem anime tedioso, que não me traz nada. E tem anime estúpido, que só toma decisões absurdas, e aí você se diverte vendo até onde ele vai chegar”, concluiu o crítico. Dessa explicação podemos concluir que o importante para um anime é causar uma reação em quem assiste, seja ela de prazer, diversão ou ódio.

Como um também apreciador de obras audiovisuais ruins, percebi que as mais atraentes para mim são as capazes de darem a volta e se tornarem comédias involuntárias. Acredito ter gostado de forma igual com Death Note, um clássico com várias qualidades reconhecidas, e com Platinum End, este uma patacoada sem tamanho. Cada uma dessas histórias conquistou minha atenção de uma forma diferente, Death Note me trazendo diversão e expectativa enquanto Platinum End com ódio recreativo, um sentimento de “raiva controlada” que uso para desestressar.

Essa classificação de várias “ruindades” diferentes parece ser comum entre produtores de conteúdo. Guto Barbosa é o youtuber por trás do canal Cronosfera, um lugar para críticas e listas dos animes e mangás mais queridos da atualidade… e dos menos queridos também. Guto utiliza algumas categorias diferentes de ruindades para animes, como o "ruim puro", quando o anime é ruim desde sempre, às vezes até com a consciência por parte da equipe de produção de que aquilo é ruim. "Me diverte imaginar todas as horas de processo criativo de todos esses setores para realizar algo que no fundo todo mundo sabia que era terrível", afirmou.

Reprodução

Quando explicou o que o levava a se divertir com um anime ruim, Guto chegou no ponto principal para essa discussão: é necessário ao otaku um pouco de abstração. "Sou uma pessoa que consegue abstrair bastante, às vezes mais do que devia, então mesmo nas mais terríveis histórias tem uma ou outra coisa que dá pra você tirar de bom". Vários exemplos foram apontados como coisas boas em um anime ruim, como "uma frase de impacto, um traço de personagem ou sentimento que te ajuda a se relacionar com outras obras, ou pelo menos entender o que não devia ser feito pra se atingir uma qualidade mínima". De alguma forma, é como se o anime ruim também te ajudasse a crescer e evoluir sua forma de apreciar os animes.

Essa abstração foi fundamental para uma dos quadros de maior sucesso no canal Cronosfera, o "Deixa que eu te conto". Nesses vídeos especiais Guto conta para o espectador como foi sua experiência com animes horríveis, narra detalhes da história que parecem não fazer sentido e sempre encontra graça ao falar das maiores atrocidades já cometidas pela indústria do anime no Japão.

Embora 90% dos animes deste quadro sejam obras mais desconhecidas, ainda assim geram mais engajamento que vídeo de obras cultuadas como One Piece, Naruto e Dragon Ball. Como o youtuber explica esse fenômeno? "Se você discorda com um tom mais áspero, gera um tipo de reação; e quando discorda rindo, outro. Tirando um caso específico, todos os vídeos do bloco são em tom leve, contando tudo que acontece nos episódios e rindo das situações ou construções narrativas inusitadas", revelou. No fim, Guto acredita que o público é atraído por conta do bom humor e da curiosidade de ver um "não assista esse anime" na capa de um vídeo.

Recentemente o canal Cronosfera analisou o filme Dragon Ball Z - O Poder Invencível (1993), o primeiro com Broly como vilão. No começo do cenário otaku no Brasil esse filme era muito compartilhado de fã para fã através de fitas VHS copiadas, muitas vezes sem legenda, e era bastante aclamado pelas ótimas cenas de ação e pelo vilão sem limites. Quando o filme foi localizado para o nosso idioma, conseguimos notar que… bem… a história não faz muito sentido. Os intervalos de tempo são confusos, os personagens agem de forma diferente da série criada por Akira Toriyama e, pior de tudo, o motivo que levou Broly a detestar Goku é muito rasteiro.

Guto explicou como não atiraram pedras quando precisou criticar um filme amado pelos fãs da obra: “Tenho uma boa relação com os fãs de Dragon Ball, e sei que muitos que amam a franquia e o filme em questão concordam comigo em algum nível. Então pra mim funciona quase como um papo descontraído e amigável entre amigos, vocês gostam ou desgostam de um anime e conversam sobre isso dando risada”, justificou o youtuber.

Está tudo bem gostar de anime ruim

Seja como Guilty Pleasure ou de uma forma didática, não há problema em gostar de um anime ou mangá ruim. Mesmo se você leitor não conseguir abstrair as (baixas) qualidades da produção, o sentimento de inconformidade causado por uma animação ruim pode ser facilmente subvertido em risadas. Além disso, assumir os elementos negativos de seu anime favorito torna as discussões na internet mais leves, um respiro em tempos com discussões sempre tão pesadas. O seu anime favorito não é uma unanimidade, e está tudo bem com isso.

E lembra sobre o que foi falado sobre a fraca aceitação do público de Bleach quando o Thousand-Year Blood War foi publicado na Shonen Jump? Aproveitei o papo com o Kitsune para perguntar o que ele acha desse arco que será adaptado para anime agora em outubro, afinal na época o crítico acompanhou semanalmente no mangá cada reviravolta criada por Tite Kubo. A resposta foi uma síntese sobre o assunto desta matéria:

“Bleach, pra mim, sempre foi o mangá que se superava no absurdo das decisões de narrativa. Então, aprendi a abraçar a idiotice e lia pra ver qual seria a próxima decisão bizarra de roteiro. Esse arco final, em especial, é um acidente de trem delicioso. É o Fyre Festival dos mangás. Uma taxa de 100% de erro. Era impressionante.” (Leonardo Kitsune)

É muito bom se divertir com anime e mangá ruim.

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.