Praticamente toda semana é possível encontrar notícias anunciando séries produzidas por Ryan Murphy, um dos mais prolíficos criadores dos EUA. Mas se a mente por trás de American Horror Story e Glee é responsável por uma porcentagem considerável do entretenimento americano, existe um equivalente japonês ao produtor: o mangaká Hiro Mashima, autor de Edens Zero e Fairy Tail.
Hiro Mashima e Ryan Murphy até fazem parte de funções bem distintas do entretenimento, mas ainda é possível relacioná-los e entender que essa comparação não tem problema quando a produção seriada é focada na diversão descompromissada.
Quem é Hiro Mashima
Ser um autor de mangá de sucesso é bastante exaustivo. Embora seja uma categoria bastante glamourizada pelos fãs, o trabalho do dia a dia é bem complicado. Os capítulos de mangás são lançados em almanaques de periodicidade bem definida, e os mais populares são lançados semanalmente. Ou seja, um autor como Eiichiro Oda (de One Piece) ou Gege Akutami (de Jujutsu Kaisen) precisa entregar uma média de 20 páginas prontas toda semana, sempre com supervisão de editores e avaliação constante do público. Com rotinas de trabalho na média de 15 horas diárias, e sem final de semana, os autores precisam se virar nos 30 para entregar o trabalho pronto.
É nesse cenário de trabalho ininterrupto que Hiro Mashima se revela um destaque no meio. O autor de 44 anos é quase uma máquina de produzir mangás, emendando um trabalho no outro e não raramente publicando séries simultâneas. Seu primeiro grande trabalho foi publicado na Shonen Magazine em 1999 e se trata do mangá Rave Master (ou então Groove Adventure Rave, seu nome original). Durante os seis anos de publicação sem pausas, e com 35 volumes lançados, o autor conseguiu encantar os leitores com seus personagens de motivações simples, traço limpo e uma narrativa sem muita profundidade.
A história de Rave Master é tão básica que parece exemplo de cartilha de mangá para principiantes: o adolescente Haru Glory inicia uma jornada ao lado da garota Elie em busca dos pedaços da pedra Rave, tudo isso com o objetivo de salvar o mundo dos vilões da vez. Como ter um mascote é um atrativo para as séries do gênero, Mashima criou Plue, uma criatura com nariz de cone de sorvete que se tornou uma espécie de avatar do autor.
Alguns meses após encerrar as aventuras de Haru, Mashima não tirou ano sabático para descansar. Poucos meses após o término de seu primeiro mangá o autor já se debruçava no papel para produzir a série que viria a ser seu maior sucesso da carreira, Fairy Tail. Lançado em meados de 2006, também na Shonen Magazine, o mangá fez sucesso a ponto de alcançar a impressionante quantidade de 63 volumes lançados, isso sem contar os diversos spin-offs. Fairy Tail é ambientada em um universo de magia e mostra o rapaz Natsu formando um laço de amizade com a garota Lucy e trabalhando juntos na guilda Fairy Tail, sempre acompanhados pelo gato azul Happy, o mascote da vez. A cada capítulo eles participam de missões, ajudam pessoas e, no fim das contas, participam de lutas ao estilo bem contra o mal.
Mesmo após mais de uma década desenhando Natsu e Lucy, Hiro Mashima não descansou depois do final de Fairy Tail e, em poucos meses, o autor novamente já estava com uma nova série engatilhada: Edens Zero, atualmente em publicação na mesma Shonen Magazine. O protagonista dessa vez é outro jovem, Shiki Grandbell, que se alia a uma outra garota, Rebecca Bluegarden, cujo sonho é se tornar uma influencer de sucesso. Para completar a jornada, ambos são acompanhados pelo gato azul robótico Happy, sósia do mascote do mangá anterior. Quase uma fórmula, não é mesmo?
A contraparte ocidental
Listar o currículo completo de Hiro Mashima em alguns parágrafos é um desafio grande, pois nos últimos 22 anos o que mais esse homem fez foi desenhar páginas de mangá. Além dos sucessos, Hiro Mashima é lembrado como um autor que descansa pouco e que está sempre lançando capítulos maiores que o habitual, às vezes com páginas coloridas e tudo. Em paralelo ao trabalho editorial, todas as três séries de Hiro Mashima ganharam versões animadas de bastante sucesso -- no caso de Fairy Tail acabou sendo um anime bastante longo.
O apelido de “máquina” não foi dado a Hiro Mashima à toa, afinal o autor produziu outros mangás enquanto estava ocupado com essas séries semanais. Além de uma releitura de Monster Hunter, recentemente o autor lançou o seu próprio Vingadores: Ultimato na forma do mangá Mashima Hero’s, reunindo os protagonistas Haru, Natsu e Shiki em uma mesma história.
Se a gente tirar o olho do mercado de mangás e procurar semelhanças com artistas de outras áreas, essa overdose de trabalho de Hiro Mashima lembra bastante uma mente criativa das séries televisivas dos EUA: o produtor Ryan Murphy. Tendo iniciado sua carreira com a série Popular (ou Popularidade, como ficou conhecida no SBT), Murphy criou e desenvolveu uma quantidade gigantesca de séries para diversas emissoras e plataformas de streaming. Em seu currículo podemos destacar Nip/Tuck, Glee, American Horror Story, Pose, Ratched e por aí vai, isso sem falar das produções anunciadas para o futuro, como American Love Story e a minissérie Monster.
Em meio a tantas produções simultâneas, tanto Ryan Murphy quanto Hiro Mashima usam um artifício semelhante: a repetição de rostos. Se a cada novo anúncio do produtor americano já surgem memes sobre a provável escalação de Evan Peters e Jessica Lange (dois queridinhos de Murphy), Mashima também garante a familiaridade dos leitores ao escalar os mesmos “atores” para seus personagens.
Se referir a personagens de mangá como “atores” parece piada, mas na verdade é uma estratégia comum para autores de mangás. Osamu Tezuka, o Deus do Mangá, repetia designs de personagens em vários mangás diferentes pois gostava de se imaginar como um diretor escalando atores para filmes. Embora não assuma esse sistema parecido, Masami Kurumada (criador de Os Cavaleiros do Zodíaco) também tem o hábito de chamar o mesmo ator do Seiya para quase todos os seus mangás. Hiro Mashima segue essa linha, mas ainda mais descaradamente.
Enquanto Natsu e Lucy de Fairy Tail são muito parecidos fisicamente com Shiki e Rebecca de Edens Zero, Hiro Mashima reaproveita personagens inteiros em mais de um mangá. Happy, o mascote mágico de Fairy Tail passou por um reboot e ressurgiu como um gato robótico em Edens Zero (até a dubladora japonesa é a mesma). Já o monstrinho Plue se tornou marca registrada do autor, dando as caras em todas as obras principais em algum papel diferente.
Mas muito além de uma produção numerosa e elencos reaproveitados, há um denominador comum importante entre as séries de Ryan Murphy e as de Hiro Mashima: a (falta de) pretensão.
Autores “Arroz com Feijão”
No meio otaku, Hiro Mashima está longe de ser um autor aclamado. Seus mangás vendem bem e os animes conquistam bastante audiência, mas não é tão comum encontrarmos elogios sobre suas séries em fóruns de fãs ou entre críticos. Muitos até o classificam como um mangaká ruim por nunca fazer nada de diferente e sempre seguir a linha dos outros shonens de lutinha do momento.
Vamos pegar Edens Zero como exemplo. O anime foi lançado agora em 2021 e está disponibilizado mundialmente pela Netflix, e é tão básico quanto aparenta. A trama é uma história intergaláctica na qual Rebecca, uma criadora da plataforma b-cube (um YouTube espacial), viaja a um parque de diversões povoado por robôs na intenção de gravar um vídeo que bombe (como se vê, até na ficção as pessoas são vítimas dos algorítimos). Lá Rebecca conhece o protagonista Shiki, um rapaz criado longe dos humanos e com poder de manipular a gravidade. Algumas lutas acontecem e Shiki parte em uma jornada com Rebecca para realizar seu maior sonho: ter vários amigos e encontrar a lendária Mãe, uma criatura escondida em algum lugar do espaço. A youtuber topa, pois isso deve render um vídeo legal para seu canal.
Com essa sinopse já podemos notar que Edens Zero não tem qualquer tipo de ambição. É um anime que reúne os elementos mais comuns de outras séries (poderes, motivações, ambientações) e os coloca de modo familiar para o fã de anime. A viagem pelo espaço de Shiki e Rebecca não é muito diferente de qualquer jornada de qualquer outro anime, e o objetivo genérico de fazer amigos nos lugares não é inédito e pode ser visto em qualquer outro mangá shonen. Inclusive isso faz parte de outras histórias do universo do autor, como Rave Master ou Fairy Tail.
Com isso chegamos à conclusão: Hiro Mashima é especialista em produzir histórias básicas em grande quantidade e, no mercado de animes e mangás, o mangaká tem uma função parecida à de Ryan Murphy. Assim como o autor japonês, Murphy tem um dedo único para oferecer entretenimento sem muito requinte. Suas séries variam de qualidade a cada episódio e a coerência costuma ser afetada por algumas decisões de roteiro, mas olhando como um todo são apenas produções feitas para divertir um público mais descompromissado.
Assim como Hiro Mashima não busca escrever algo reflexivo como um Fire Punch, e nem busca questionar os costumes da sociedade japonesa como em um mangá de Inio Asano, Ryan Murphy não está no mercado para produzir séries complexas que fariam parte do catálogo de uma HBO da vida. Tanto Mashima quanto Murphy são excelentes na arte de fazer histórias básicas e conseguem fazer isso com velocidade, algo que agrada as empresas envolvidas que desejam lançar cada vez mais produções.
Estamos sempre atrás da excelência nas séries, filmes e animes, mas olhamos com menos carinho e importância para aqueles que conseguem fazer um arroz com feijão. Alguém com mais bagagem pode achar Edens Zero uma bobagem sem tamanho ou uma repetição de coisas já conhecidas, mas sempre há aquela pessoa com menos histórico e que pode se divertir muito com a história. Isso sem falar que são produções destinadas a quem não quer pensar muito e só se distrair por alguns momentos. Com tantas séries ruins saindo, devemos valorizar as pessoas que entregam um prato que não deixa um gosto amargo na boca.
Ryan Murphy e Hiro Mashima não estão aí para inovar ou provocar reflexão, os dois são apenas artistas que querem levar um pouquinho de diversão descompromissada para o público. E, nesse quesito, eles são imbatíveis.
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Para acompanhar Hiro Mashima no Brasil
Caso você nunca tenha dado uma chance ao Hiro Mashima, há várias formas de acompanhar suas séries. Infelizmente a única indisponível é Rave Master: o mangá nunca foi lançado no Brasil e o anime foi exibido durante pouco tempo pelo Cartoon Network no começo dos anos 2000, em uma versão censurada.
Fairy Tail é possível assistir a episódios legendados, tanto na Crunchyroll quanto na Funimation. Uma dublagem em português existe, mas só alguns dos episódios foram exibidos na finada emissora aberta Loading. O mangá, e seus spin-offs, foram publicados pela editora JBC.
E, para terminar, Edens Zero está na Netflix, com dublagem e tudo. A produção continua sendo exibida no Japão, e no streaming temos somente os primeiros 13 episódios. O mangá é publicado no Brasil pela editora JBC em dois formatos diferentes: a editora lança Edens Zero em volumes encadernados (impresso e digital), mas também é possível comprar digitalmente os capítulos inéditos lançados simultaneamente com a publicação japonesa.