Se você entrar hoje em uma loja de quadrinhos há muitas chances de ser impactado por uma obra de Junji Ito. De uns anos para cá o mestre do horror japonês se tornou o principal alvo das das editoras de mangás, e mais de 10 volumes encadernados de suas histórias chegaram para o deleite dos leitores brasileiros em um curto intervalo de tempo.
Claro que se trata de um autor reconhecido por seu talento e premiado no mundo inteiro, mas como ele chegou nesse patamar? Como se tornou um dos nomes mais publicados no Brasil? E a pergunta mais importante: qual o truque de Ito para conseguir tudo isso sem nem ao menos emplacar um anime de muito sucesso?
Quem é Junji Ito?
Nascido em 1963, o jovem Junji Ito demorou para se encontrar como desenhista de mangás. Embora até fosse fã de quadrinhos durante a infância, principalmente da obra de Kazuo Umezu, profissionalmente Ito debandou para o lado das anestesias, cáries e operações de retirada de siso. O futuro mangaká continuou desenhando em paralelo à carreira de dentista, e em 1987 Ito ficou bem posicionado em um concurso realizado pela revista Gekkan Halloween, publicação shoujo (para garotas) com foco em histórias de horror. E como o destino prega muitas peças, Junji Ito foi julgado justamente por Kazuo Umezu, seu ator favorito da juventude. A partir daí, Ito deixou o removedor de tártaro de lado para se dedicar à caneta nanquim.
Seu jeito de contar histórias chama a atenção por ser um estilo de terror bem distinto do que encontramos no ocidente. Se aqui o mais comum são obras se escorando em situações grotescas ou sustos com objetivo de fazer o espectador dar um pulo da cadeira, Ito domina a arte de criar uma situação que gera desconforto no leitor. Suas histórias sempre partem de uma premissa até boba, mas com o passar das páginas a narrativa vai envolvendo o leitor até chegar num ponto que ficamos com medo de coisas absurdas como espirais ou buracos no formato do nosso corpo. Os personagens são os de menos, eles são apenas ferramentas para o autor criar a situação mais inusitada e assustadora possível para a gente.
Com um catálogo de dezenas de títulos, muitos deles coletâneas de histórias curtas, Junji Ito tem três obras fundamentais em seu currículo: Tomie, Uzumaki e Gyo. A primeira foi literalmente a estreia do autor, pois a história que Ito usou para participar do concurso da Gekkan Halloween era um capítulo da saga da terrível garota Tomie. Na trama acompanhamos várias histórias nas quais japoneses acabam seduzidos pela estranha figura de cabelos compridos e, a partir daí, encontram sua ruína ao se aproximar da criatura.
Uzumaki, publicada na revista Big Comic Spirits (destinada ao público adulto masculino), é uma das raras histórias mais longas do autor. Aqui conhecemos a cidade de Kurozu-cho, um lugar no qual os moradores se tornam aficionados por espirais. Foi com essa história no mínimo inusitada que Junji Ito quebrou as barreiras japonesas e concorreu o prêmio Eisner em 2003, além de ter ganhado adaptações para cinema e videogames (!?) no ano 2000. Por fim, a outra aclamada obra do autor é Gyo, trama sobre um casal em férias na ilha de Okinawa que, após um mergulho, acaba envolvido em uma história de desastre com peixes com pernas mecânicas.
As adaptações
É curioso pensar como Junji Ito, um nome tão importante nos mangás, não teve tanta "sorte" assim em adaptações para animes. Enquanto o mercado japonês funciona sempre no esquema "mangá famoso se torna anime para que este aumente as vendas dos quadrinhos", Junji Ito foi por um outro lado e ganhou adaptações de outra forma. Muitas de suas histórias foram transformadas em live action, tanto para televisão quanto para cinema. O Japão é um país com intensa produção cinematográfica de terror, então Junji Ito se tornou uma grande fonte de adaptações para o gênero. Além do filme Uzumaki, sucesso nos anos 2000, o autor acabou responsável pela franquia Tomie: nada menos que nove filmes da mulher macabra foram produzidos entre 1998 e 2011.
Já no campo dos animes… bem… Junji Ito não é o autor mais sortudo do mundo. Mesmo com qualidade de histórias, suas adaptações para animação acabam ficando muito aquém do esperado. A terrível invasão dos peixes vista em Gyo ganhou um anime OVA em 2012 adaptado pelo aclamado estúdio Ufotable, mas quem esperava a qualidade de um Demon Slayer acabou dando com a cara no asfalto. O anime de Gyo até tem um estilo interessante nos personagens humanos, mas os peixes feitos com a computação gráfica pouco avançada da época transforma a experiência em uma obra assustadora… do ponto de vista técnico. O anime parece estranho e o público não defende essa adaptação.
Já em 2018 o estúdio DEEN (das últimas temporadas de The Seven Deadly Sins… isso, aquelas temporadas “feinhas”) produziu uma série chamada Junji Ito Collection adaptando muitas das histórias curtas do autor. Embora o anime, que está disponível oficialmente no Brasil pela Crunchyroll, não seja tão terrível quanto o anterior, a coletânea não agradou o público otaku. Entre as críticas feitas está o fato do horror de Ito não ter sido bem adaptado pelo estúdio, seja pelo ritmo quanto pelo visual simplificado demais. Essa rejeição ao anime do estúdio DEEN é o que nos deixa com pé atrás com o anime Junji Ito: Histórias Macabras do Japão, produção que será lançada na próxima quinta-feira (19) pela Netflix. A ideia aqui é (novamente) adaptar histórias famosas do autor em 12 episódios, e o trailer divulgado até o momento nos dá uma forte impressão de ser algo mais próximo do anime de 2018 do que gostaríamos. Pode até ser uma boa introdução à obra do autor, mas longe de ter a qualidade dos quadrinhos.
Mas há uma chance de Junji Ito conquistar pela primeira vez os fãs de anime agora em 2023, pois a Production I.G (de Aoashi) está desenvolvendo uma animação baseada em Uzumaki. Apenas o futuro dirá se esse anime será bom, mas os fãs já ficaram "felizes" quando o estúdio atrasou o lançamento com o intuito de melhorar o resultado final. Aqui é o caso de olhar para o copo meio cheio: um anime atrasado ainda tem chance de nos surpreender.
O que explica seu sucesso no Brasil?
Embora pareça fácil, explicar o sucesso de Junji Ito aqui é desafiador. O autor é um dos nomes mais publicados em mangás no Brasil atualmente, porém demorou muito para as editoras descobrirem suas histórias. Em 2006 a editora Conrad tomou a dianteira e lançou Uzumaki em três volumes mais luxuosos, pelo menos para os padrões da época. "Este título faz parte de uma nova linha de quadrinhos que a Conrad vem trazendo para o Brasil numa aposta muito bem-vinda de expansão de gêneros. Até pouco tempo, tudo que se via nas bancas eram, basicamente, ação ou humor. Hoje, o leque de opções vem aumentando consideravelmente" escreveu Mario César do site Universo HQ quando resenhou o primeiro volume da obra de Junji Ito, lá no ano de publicação. Mas se à época parecia uma inovação, logo a Conrad perderia sua relevância (e seus títulos) com uma forte crise. Assim, Junji Ito ficaria um tempo longe das livrarias brasileiras.
A retomada do horror veio através da editora Darkside, que anunciou a coletânea Fragmentos do Horror em 2016, dez anos após a primeira publicação do autor no Brasil. Focado no mercado colecionador de luxo, com uma edição de capa dura e várias firulas para deixar o volume mais bonito e estiloso, o título repercutiu bem entre os fãs e parece ter aberto as portas para outras editoras irem atrás de histórias assustadoras de Ito. O catálogo de produções de Junji Ito se dividiu basicamente entre duas editoras, a Pipoca & Nanquim e a Devir, que juntas já lançaram 9 obras diferentes. As grandes obras primas de Ito citadas na matéria acabaram divididas: a Pipoca & Nanquim publicou Tomie enquanto a Devir lançou Gyo e Uzumaki, todas as editoras com edições caprichadas.
Junji Ito virou queridinho das editoras de mangá? Virou. Mas não é só das editoras de mangá, é porque ele é bom mesmo. “O autor realmente eleva o horror em quadrinhos para um novo patamar, através de histórias inusitadas e sempre surpreendentes”, explica Paulo Roberto da Silva Jr, gerente editorial da Devir. O responsável por trazer os mangás de Gyo e Uzumaki ressalta como a narrativa e técnicas de Ito fogem do comum e arrebatam os leitores com uma leitura diferenciada: “Há um ineditismo refrescante nas histórias de horror de Junji Ito”, considera.
A opinião também é compartilhada por Bruno Zago, um dos editores da Pipoca & Nanquim, que afirma: “basicamente nenhum trabalho dele tem trabalho de arte e roteiro abaixo da média”. Para Zago, as histórias do autor partem de premissas inusitadas, ainda mais para o público ocidental acostumado a explicações plausíveis nas tramas. "Junji Ito está interessado apenas na situação em si, sem se preocupar em dar explicações. São histórias que cativam muito o público em geral por conta do horror que parte de ideias simples e cotidianas e vão sendo elevadas a níveis absurdos de tensão", complementa o profissional.
O momento propício do mercado parece a melhor explicação para a avalanche de mangás de Junji Ito no Brasil: “Junji Ito já havia sido publicado antes por aqui, mas quando a Devir lança Uzumaki em 2018 - através do selo Tsuru - o objetivo foi oferecer grandes clássicos do mangá num formato mais luxuoso, para um público que nós apostávamos estar ansioso e, até então, carente de um material como esse”, detalha o gerente da Devir. O profissional ainda explicou como o interesse pela cultura asiática num geral aumentou nesses últimos tempos, levando também a um aumento na base de leitores. Já Bruno Zago tem mais um fator importante para as editoras brasileiras terem se afeiçoado tanto ao mestre do horror, o tamanho de suas histórias. "O trabalho dele atrai as editoras por serem sempre obras fechadas, nada de coleções longas, e de muita qualidade. Basicamente nenhum trabalho dele tem trabalho de arte e roteiro abaixo da média", avaliou o editor da Pipoca & Nanquim.
Só se fala em Junji Ito, a ponto do autor ter sido um dos convidados da última Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Essa corrida por material respingou até em outras editoras, que foram atrás de mais títulos do japonês. Até mesmo o mangá biográfico dos gatos mascotes do autor (chamado de Diário dos Gatos Yon & Mu) acabou de ser publicado no Brasil pela editora JBC! E o futuro parece radiante para seus fãs: a Pipoca & Nanquim promete lançar mais 10 obras ainda em 2023, totalizando 17 quadrinhos dele pela editora.
Ser um autor de “venda garantida” poderia levar o mercado a um “monopólio” perigoso, mas não parece ser o caso. Junji Ito encontrou sua fatia de mercado no Brasil e também está permitindo que outros autores de terror cheguem por aqui. Recentemente, a JBC anunciou a publicação de Contos Macabros de Kanako Inuki, coletânea da “rainha dos mangás de horror”, então podemos considerar que as portas desse gênero foram abertas por Junji Ito e suas histórias. Agora falta só um bom anime para que o autor seja ainda mais celebrado desse lado do globo.
Confira os mangás de Junji Ito já publicados no Brasil:
- A Sala de Aula que Derreteu (Editora Pipoca & Nanquim)
- As Egocêntricas Maldições de Souichi (Editora Pipoca & Nanquim)
- Calafrios (Editora Pipoca & Nanquim)
- Contos de Horror da Mimi (Darkside Editora)
- Diário dos Gatos Yon & Mu (editora JBC)
- Fragmentos do Horror (Darkside Editora)
- Frankenstein (Editora Pipoca & Nanquim)
- Gyo (Editora Devir)
- Sensor (Editora Pipoca & Nanquim)
- Tomie (Editora Pipoca & Nanquim)
- Uzumaki (Editora Devir)
- Vênus Invisível (Editora Devir)