Donos de um impacto cultural como poucas outras mídias, os mangás (nome usado para se referir aos quadrinhos japoneses) e as novelas exibidas no Brasil compartilham muitas características de estrutura e mercado, mesmo sendo muito distintos. Acredite: as novelas brasileiras têm mais a ver com mangás que com as próprias novelas japonesas (os famosos doramas, que funcionam mais como séries).
Em vez de separar cada uma em um canto como se fossem coisas diferentes, por que não fazer essa provocação e relacionar oito semelhanças entre mangás e novelas brasileiras? Ao final da matéria, você vai perceber que Demon Slayer - Kimetsu no Yaiba não é tão distante assim de uma Avenida Brasil.
Histórias folhetinescas
Conforme aprendemos na aula de Literatura, os folhetins são histórias seriadas desenvolvidas no decorrer de um tempo determinado. Em vez de trazer toda a história de uma vez, a narrativa é "picotada" e o público vai lendo uma narrativa ágil e cheia de reviravoltas. Se no passado os folhetins eram romances publicados em páginas de jornais, atualmente temos outras formas de acompanhar tramas assim.
As telenovelas (muitas vezes chamadas de "folhetim" por causa da semelhança ao gênero literário) costumam ser exibidas diariamente, tanto de segunda-feira a sexta-feira ou de segunda-feira a sábado, enquanto os mangás são serializados de acordo com a antologia em questão: um mangá publicado na Shonen Jump da Shueisha tem capítulos semanais, já a Shonen Gangan da Square Enix tem periodicidade mensal.
Em ambos os formatos encontramos uma das principais características do gênero, o "gancho". Esse recurso, uma cena com conclusão indefinida ao final de cada história, é o que mantém o interesse do público e atiça a vontade de ver o desenrolar no próximo capítulo. Ou seja, um personagem misterioso aparecendo ao final de um capítulo de One Piece para ajudar Luffy é quase como quando a protagonista da novela é encurralada pela vilã com uma arma: você quer o próximo capítulo para saber no que vai dar.
Autor: a peça mais importante
Embora o autor seja fundamental para a criação de uma história, nem sempre ele desempenha o principal papel da cadeia de produção. Pegando como exemplo os filmes da Marvel, por mais que alguns diretores até consigam emprestar seus estilos aos longas, quem cuida dos rumos e desenvolve as tramas são os produtores da Disney. Já as novelas brasileiras e os mangás japoneses compartilham a mesma característica de dar a maior autonomia ao criador da história.
Claro, um Akira Toriyama não pôde colocar tudo o que queria em Dragon Ball ou mesmo João Emanuel Carneiro teve suas limitações na hora de escrever Avenida Brasil, mas tudo relacionado às suas criações contavam com o selo de aprovação do criador. Até mesmo o lamentável filme americano Dragon Ball Evolution só foi produzido porque teve o selo de aprovação do autor do mangá original.
A função do editor
Ao contrário de um autor de romance literário, um autor de telenovela ou de mangá não dispõe de total liberdade para exercer suas funções, tendo sempre que respeitar as ordens vindas de um superior,a figura do "editor". Ele, um profissional com estudo de mercado, é quem auxilia o autor a prosseguir em um caminho mais adequado para a história, aparando arestas e retirando exageros que poderiam prejudicar as vendas.
Masashi Kishimoto, o autor de Naruto, tinha umas ideias muito diferentes para seu mangá originalmente. O criador do ninja mais famoso do mundo queria uma história em que animais convivessem com humanos, mas foi vetado por seu editor.
Essa figura do editor também existe nas novelas, pois quando uma trama vai mal de audiência é necessária uma intervenção da emissora para minimizar a crise. Várias novelas só conseguiram ter sucesso de público após algumas mudanças pontuais em sua história, às vezes até mudando o gênero da história. Rainha da Sucata, por exemplo, deixou de lado o humor quando percebeu que o público estava interessado em algo mais dramático.
Pesquisas de público
Os mangás e novelas são obras abertas, ou seja, não existe um fim planejado e costuma haver espaço para esticar (ou encurtar) o desenvolvimento da história. Nesse ponto, a audiência do público é fundamental.
As editoras de mangás costumam usar um cartão de pesquisa para pedir aos leitores que enumerem seus títulos favoritos na revista, e com isso eles podem durar mais tempo na antologia. Mangás como My Hero Academia, Jujutsu Kaisen e The Elusive Samurai garantem espaço nas páginas da Shonen Jump porque o público tem bastante apreço pelos mangás, já títulos como Samurai 8 (do Masashi Kishimoto) e Build King (de Mitsutoshi Shimabukuro) não tiveram tanta sorte e foram rapidamente cancelados pela revista, até porque nem seus volumes encadernados vendiam bem.
Já as novelas brasileiras avaliam a audiência de forma mais tecnológica, mas com um objetivo parecido. A audiência é medida através de aparelhos people-o-meter instalados em residências selecionadas pelo Kantar IBOPE, e o instituto é capaz de estimar a audiência de cada programa assim como a segmentação do público. Novelas com baixa audiência, mesmo que venham de autores renomados, são encurtadas sem dó nem piedade, e há até caso de histórias encerradas às pressas.
Ou seja, temos semelhanças entre a novela Brida e o mangá de Build King, ambos cancelados sem chance de um final decente.
O público "manda"
O público não contribui apenas com a audiência, mas também com os rumos da história. Tanto em novelas quanto mangás há a preocupação de dar mais espaço para personagens queridos pelo público, assim como mudanças eventuais de acordo com críticas.
Foi o apreço do público que transformou Vegeta de Dragon Ball em um quase co-protagonista, mesmo com sua inserção após metade da história já com um personagem principal consolidado. Algo parecido aconteceu quando Félix (Mateus Solano) de Amor à Vida, antigamente um vilão cheio de frases de efeito, foi transformado em personagem principal substituindo a rejeitada protagonista Paloma (Paolla Oliveira).
Além das pesquisas de público, os leitores podem participar de enquetes de popularidade de personagens de mangás de tempos em tempos. Nas novelas esse tipo de pesquisa é promovida pela própria emissora, reunindo um grupo de espectadores e perguntando sobre a trama sendo exibida.
Assistentes
Os autores de mangás e novelas têm grande prestígio, mas isso não impede que sejam duas classes com jornadas de trabalho bastante exaustivas. Um autor de mangá da Shonen Jump precisa desenhar 20 páginas de história todas as semanas, além de atender a outras demandas solicitadas pela editora (como ilustrações coloridas para capa ou auxílio à equipe do anime), e um autor de novela tem a tarefa de entregar semanalmente um bloco com seis capítulos, com média de 60 páginas cada, além de resolver perrengues com patrocinadores e atores. Para dar conta do volume gigantesco de trabalho, os autores dos dois formatos contam com a ajuda de assistentes.
Um autor de mangá pode delegar coisas mais trabalhosas para seu assistente, e ao mesmo tempo o profissional novato vai adquirindo experiência para futuramente tentar a autoria de um mangá próprio. No caso das novelas, os autores dividem as cenas entre alguns colaboradores e, posteriormente, juntam todo o trabalho e revisam tudo. Assim como nos mangás, isso funciona como uma "escola" para novos autores irem adquirindo prática e experiência nesse meio tão fechado.
Demografias diferentes
Quem acompanha o meio de quadrinhos japoneses já deve ter esbarrado em palavras como "shonen" (mangá para garotos adolescentes), "shoujo" (mangá para garotas) e "seinen" (mangá para homens adultos). Erroneamente consideradas gêneros de história, na verdade elas se referem ao público-alvo no qual cada história é destinada. O que determina a demografia de cada mangá não é o gênero da história (como romance ou ação), e sim a revista na qual o mangá saiu. Uma história de ação como Dragon Ball é shonen porque saiu na Shonen Jump e é destinado a jovens adolescentes do sexo masculino, da mesma forma que a série de romance Nisekoi, também shonen por sair na mesma revista.
Há também uma "demografia" para as novelas, embora não seja dividida em sexo como no Japão, ela é determinada de acordo com o horário de exibição da trama. Uma história transmitida na faixa das 19h da Globo, a famosa "novela das sete", busca um público de determinada idade e grau de atenção, ao mesmo tempo que as temporadas de Malhação buscam atender ao público mais jovem. Já novela das 23h podemos esperar algo destinado a um público mais velho, e conta com doses maiores de violência e conteúdo sexual como se fosse um "seinen" feito pela Globo. Outras emissoras também têm suas próprias demografias, como a faixa de novelas do SBT destinadas ao público infantil, como Chiquititas e As Aventuras de Poliana.
Cultura de massa
Já falamos de várias características técnicas, mas talvez a principal semelhança entre novelas brasileiras e mangás japoneses seja o alcance e sucesso dessas mídias em seus respectivos países. Com milhões de exemplares vendidos a cada mês, e infinitas histórias sendo lançadas, os mangás fazem parte da cultura de massa do Japão e são acompanhados por uma quantidade enorme de pessoas do mundo inteiro. Enquanto os animes acabam sendo mais nichados, o alcance de um mangá é algo gigantesco no país. E naquelas páginas nós vemos um reflexo do pensamento japonês, da cultura e a forma como a sociedade funciona. E mesmo neste século ainda vemos fenômenos: o final de Demon Slayer conseguiu a façanha de esgotar a Shonen Jump, e a editora precisou correr para imprimir milhares de cópias de um dia para o outro.
Sobre as novelas... bem, estamos no Brasil, não é nem preciso dizer o impacto cultural das histórias exibidas diariamente para milhões de espectadores. As novelas levantam discussões, ditam moda e promovem uma sensação de união nacional que nem uma partida de futebol da seleção é capaz. Assistir a uma novela antiga é como se pudéssemos ver como era o país naquela época, de tão rico é o reflexo cultural da sociedade na produção. Sem falar que o Brasil para em dias de capítulos importantes: no dia da exibição do último capítulo de Avenida Brasil havia uma dúvida se o governo conseguiria assegurar o fornecimento de energia elétrica para todo o país acompanhar o desfecho das aventuras de Nina e da vilã Carminha.
Além de tudo, tanto as novelas quanto os mangás acabam "exportando" a cultura de seus países para o mundo. Assim como conhecemos um pouco mais do Japão, seus hábitos e costumes, através das centenas de mangás lançados por aqui, vários países do mundo aprenderam sobre a cultura brasileira através das histórias exportadas a todos os continentes. São histórias vistas por pessoas de várias idades, de diversas classes sociais e movimentam uma indústria que gera muito dinheiro e empregos. Basicamente, cultura de massa.