Comprar mangá no Brasil não é para principiantes. Enquanto os quadrinhos japoneses vão ganhando destaque em muitos países, acompanhar suas histórias favoritas por aqui pode ser um pouco trabalhoso para os leitores. Por mais que tenhamos uma quantidade expressiva de títulos sendo lançados todos os meses, existe um fantasma que assombra qualquer leitor de mangás no Brasil: os volumes que “desaparecem” pouco tempo após o lançamento. O que leva a esse esgotamento e o que as editoras estão fazendo para evitar isso? Fomos atrás de respostas!
Como embarcar em One Piece?
Se alguém lhe perguntar como começar a ler a saga Harry Potter hoje, sua resposta provavelmente envolve sugerir que a pessoa vá até uma livraria (física ou virtual) e compre uma edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal o primeiro livro da série, correto? Mas se alguém lhe perguntar como começar a ler One Piece no Brasil, é bom o interlocutor se preparar para uma romaria: é necessário explicar como arranjar os primeiros volumes em formato digital e dar um minicurso sobre como garimpar volumes posteriores sem cair nas garras de quem cobra três dígitos por uma única edição. Guardadas as devidas proporções, afinal Harry Potter é uma série de sete volumes e o mangá do pirata já possui 99 edições, talvez seja mais fácil encontrar o tesouro One Piece escondido por Gol D. Roger do que acompanhar o mangá no Brasil.
Mangás possuem características próprias. Ao contrário de um gibi da Turma da Mônica que o leitor consegue comprar qualquer edição na banca e entender o que está acontecendo, boa parte dos quadrinhos japoneses publicados no Brasil apresenta uma história contínua que, para ser compreendida, é necessário acompanhar desde a primeira edição. Mas o que fazer quando você esbarra em um buraco no meio da sua coleção, ou nem ao menos consegue encontrar um primeiro volume para ler? Uma verdadeira caçada.
O mercado de mangás no Brasil está repleto de histórias pitorescas sobre edições esgotadas. Durante muito tempo os fãs do mangá Berserk da editora Panini saíram atrás do volume 13 da republicação que, durante muito tempo, evaporou das lojas. Tempos depois, alguém da editora encontrou uma caixa com várias embalagens ainda lacradas e a Panini colocou essas edições para vender em seu estande no Anime Friends. Já a 19ª edição de Os Cavaleiros do Zodíaco - Episódio G da editora Conrad possivelmente é o mangá mais raro do país por conta de um pesadelo logístico: um caminhão com parte considerável da tiragem foi assaltado no Rio de Janeiro.
Com os constantes esgotamentos de volumes pontuais e de primeiras edições, o público leitor de mangás no Brasil foi dando seu jeitinho para não ficar sem os volumes de sua história favorita. Foram sendo criados não só grupos em redes sociais para leitores compartilharem informações sobre lançamento de mangás, mas também sites de fãs dedicados a mostrar aos leitores tudo o que é lançado naquela semana ou mês, além de reunir uma ou outra informação que as editoras divulgam apenas em lives semanais com (algumas) hora(s) de duração. Esses ecossistemas de fãs são funcionais para quem já está dentro do nicho, mas a coisa complica quando a pessoa está do lado de fora desse meio. Vamos pegar novamente o exemplo de One Piece.
O mangá sobre o pirata que estica chegou aqui através da Panini em fevereiro de 2012 e seu lançamento foi considerado uma vitória por parte dos fãs. One Piece já havia sido publicado durante um tempo no Brasil pela Conrad dez anos antes, mas muitas edições eram raras e logo a editora perdeu os direitos do mangá. A republicação pela Panini permitiu que novas pessoas pudessem acompanhar a história a partir da primeira edição, e o título conseguiu encostar na publicação japonesa. O mangá foi um sucesso de vendas na ocasião e alguns volumes iniciais estão esgotados… até hoje.
Novos volumes de One Piece foram sendo lançados pela Panini, mas não houve plano por parte da editora de reimprimir as primeiras edições de tempos em tempos para conquistar leitores que chegaram depois de 2012. O anime recentemente foi disponibilizado pela Netflix com dublagem, e a série figurou entre as dez produções mais vistas da plataforma, mas se alguém quisesse acompanhar a versão em quadrinhos ficaria mais perdido que o próprio personagem Zoro. Enquanto no Japão há um trabalho para que os animes promovam a venda de mangás, aqui o planejamento parece não funcionar de forma efetiva.
Mas quem dera se o problema dos leitores fosse apenas encontrar um mangá lançado há quase 10 anos. Nos últimos tempos o mercado de mangás no Brasil passou por problemas de distribuição, crise de papel além dos efeitos da pandemia, e com isso até mesmo mangás lançados há menos de um ano estão desaparecendo. Lançado em outubro de 2020, o mangá I Sold My Life For Ten Thousand Yen Per Year já entrou na lista dos mangás esgotados no Brasil e não há planos de reimpressão por parte da editora JBC, conforme a editora explicou em uma live recente.
Como isso afeta o mercado
A falta de determinados volumes de mangás é algo que afeta não só o consumidor como também as empresas. “É crucial manter o catálogo sempre disponível, desde o início percebemos que isso garante a captação de novos leitores”, explica Junior Fonseca, responsável pela NewPOP Editora. O diretor ainda explica que ter o estoque disponível aos leitores inclusive é uma forma de garantir a venda de volumes posteriores: “mantendo todos os volumes de uma série disponíveis, podemos trabalhar e investir bastante na divulgação de forma muito mais assertiva.” garante Junior, cuja editora é conhecida por manter na medida do possível as edições disponíveis para compra. Essa característica positiva, no entanto, também acaba “jogando contra” sua empresa.
Por outras editoras terem a “fama” de seus volumes esgotarem com rapidez, criou-se um senso de urgência nos fãs que os leva a dar preferência aos títulos daquelas editoras mais problemáticas. “Acabamos sendo prejudicados um pouco quando pensamos de forma imediatista”, explica Junior, “os leitores, apesar de adorarem alguma obra, priorizam a compra de outras séries pelo medo de não encontrarem mais o mangá depois de um tempo”. Para o editor, a fuga dos leitores dessas vendas nos primeiros meses bagunça a recepção dos dados de venda geral daquele título.
Lendo sobre esse senso de urgência deixa a impressão de que deixar mangá esgotar nas lojas pode ser até ser algo "positivo" para as editoras, afinal garantiria uma venda mais urgente, mas não é o caso. A reportagem conversou com alguns lojistas e todos foram unânimes ao relatar que a ausência de alguns volumes prejudica as vendas de mangás. Um dos vendedores que detalhou como é a recepção dos leitores foi Henrique Lanute, dono da loja Capitão Onigiri: “muita gente vem me perguntar se tal coleção tem volumes difíceis de encontrar, justamente no medo de começar uma coleção e não conseguir terminar”. Além dessa, ouvi histórias de que as pessoas desistem de comprar algum volume posterior por não ter encontrado o primeiro volume à venda.
Com a falta de volumes nos pontos de venda oficiais, criou-se um mercado paralelo de vendas de mangás em lojas e pela internet, e lá os títulos são vendidos por preços maiores que os sugeridos pela capa. O I Sold My Life for Ten Thousand Yen Per Year, citado no tópico anterior, foi vendido pela editora por R$ 27,90, mas pode ser encontrado por valores acima de R$ 50,00 com vendedores do Mercado Livre e Shopee. Já mangás mais antigos e mais raros podem facilmente atingir os três dígitos de preço. Lembra o One Piece publicado em 2012? Uma primeira edição seminova pode custar quase R$ 200,00! Nada disso é ilegal, afinal nada impede que uma loja venda acima do preço sugerido.
Os elevados preços praticados por edições esgotadas levou até ao surgimento de uma lenda urbana na qual pessoas ou lojas estariam comprando uma grande parcela das tiragens das editoras com o objetivo de esgotar os mangás e elevar o preço no mercado paralelo. Para Junior Fonseca, isso é somente uma história que surgiu na internet: “as lojas especializadas que utilizam marketplace, por exemplo, não compram quantidades suficientes para esgotar uma tiragem. A venda é mínima, não corresponde a nem 4% da tiragem que trabalhamos”. Os números, no caso, se referem somente à NewPOP editora.
Por outro lado, o dono da loja Capitão Onigiri, que também compra volumes usados de leitores que vendem suas coleções, compartilhou o curioso caso de um rapaz que adquiriu 30 exemplares do primeiro volume de Jujutsu Kaisen com o intuito de vender a um preço mais elevado. O tiro, no entanto, saiu pela culatra: a editora Panini rapidamente reimprimiu mais edições de Jujutsu Kaisen e tornou inviável a venda por um preço elevado. Apenas para ilustrar essa matéria, a primeira edição do mangá chegou às bancas custando R$ 22,90, ou seja, se a pessoa comprou a preço de capa na época ela precisou desembolsar R$ 687,00 nessa aposta especulativa que não deu certo.
A solução para o problema
Se temos mangás que se esgotam muito rapidamente, o senso comum nos diz que é só imprimir mais volumes, correto? Bem, talvez não. A reportagem procurou a Panini e a JBC para entender como elas lidam com essa questão de esgotamento de títulos e a conta parece ser mais complicada do que parece. “Na JBC, a relação principal não é necessariamente o esgotamento e sim a velocidade com que ele ocorre. Isso porque, da mesma forma que um produto que vende antes do previsto pode demandar uma atenção para ajustes, um outro produto que ultrapassa a média de tempo para se pagar em seu ciclo de vida pode ser tão ou mais prejudicial para a sustentabilidade do negócio” detalha Edi Carlos Rodrigues, gerente de marketing da editora JBC. Em outras palavras, a editora se vê na situação de encontrar um equilíbrio em manter o produto disponível e não ter muita estocagem, que também gera custos: “temos exemplos de tiragens muito altas esgotando em duas semanas e tiragens menores que duram há meses”, explica.
A Panini, através de sua assessoria de imprensa, argumentou de forma semelhante. As edições recentes que se esgotaram é reflexo de uma “demanda acima do previsto”, e que existe um “um trabalho logístico da editora que visa dosar a demanda, a capacidade de produção e estoque”. A multinacional explica que a questão de estoque não gera custos apenas para a editora, mas também para os lojistas e varejistas que vendem os mangás. Mas algumas estratégias vêm sendo tomadas para estimar melhor as demandas de lançamento de cada título. O gerente de marketing da JBC lembrou, por exemplo, da importância da pré-venda como forma de minimizar a incidência de erros no dimensionamento das tiragens.
Entre tiragens que esgotam e as que aguentam a demanda do público, a reimpressão frequente tem se mostrado a melhor ferramenta para combater essa falta de disponibilidade e os preços altos do mercado paralelo. "Das 151 edições de mangás lançadas esse ano pela JBC, 48% foram reposições", detalhou Edi Carlos, que também implantou no site oficial da editora um formulário para que os leitores sinalizem sobre edições que gostariam de ver disponíveis. Por sua vez, as reimpressões na Panini estão se tornando mais constantes e agora é possível encontrar com mais facilidade primeiras edições de títulos grandes como Jujutsu Kaisen, Demon Slayer e mais.
A grande novidade é que, desde o final de 2020, as duas editoras começaram a reimprimir mangás bem mais “antigos” do catálogo, com preço reajustado por conta da situação atual da nossa Economia. A JBC vem republicando Hunter x Hunter, lançado originalmente pela editora em 2008, assim como vários volumes pedidos de My Hero Academia, um dos sucessos de venda da editora. As novas tiragens rapidamente mostraram o impacto: a reimpressão de Hunter x Hunter se encontra esgotado em várias lojas no momento de publicação dessa matéria e o primeiro volume de My Hero Academia recentemente figurou em 5º lugar na lista de publicações de ficção mais vendidas do PublishNews, especializado no mercado editorial como um todo.
A Panini começou um processo semelhante em novembro de 2020 e levou às lojas edições reimpressas de dois sucessos da última década: Dragon Ball (originalmente lançado em 2012) e Naruto Gold (de 2015). "Muitas vezes o mercado responde de maneira muito superior do que esperávamos e a saída é sempre a reimpressão (...) a fim de suprir justamente os colecionadores que ficam sem alguns volumes", disse a assessoria de imprensa da Panini à reportagem.
Embora não tenha sido citada pelas editoras procuradas para essa matéria, existe também a modalidade do mangá digital. Com alguns volumes oferecidos pela editora Panini e um vasto catálogo lançado pela JBC, várias lojas online vendem capítulos e volumes de mangás digitais que têm uma grande vantagem em comparação aos títulos impressos: eles não esgotam. O mercado de quadrinhos digitais tem explodido no Japão e é questão de tempo até começar a ser mais forte deste lado do globo.
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Mas e o One Piece?
No começo da matéria usamos como o mangá de One Piece como exemplo de um título esgotado e muito solicitado pelos leitores, correto? Para resolver esse problema, a Panini decidiu seguir por uma “linha alternativa à reimpressão”. Durante a versão virtual do Anime Friends 2021, Bianca Sakai (responsável pelo marketing da Panini) anunciou que One Piece ganharia uma republicação no Brasil, dessa vez em um robusto formato 3 em 1.
“Há títulos que têm disponibilidade para formatos diferenciados e entendemos que há demanda no mercado brasileiro para tal. Há outros que a reimpressão já é suficiente”, nos explicou a editora quando perguntada sobre quais critérios são utilizados para definir se um título ganhará uma reimpressão ou um novo lançamento com novas características. Pelo visto, podemos imaginar que One Piece é visto como um produto de muito potencial e que merece essa nova oportunidade com novo acabamento.
Atualmente o mercado de mangás no Brasil ainda parece confuso e perigoso para um leigo, mas aos poucos tem tentado ser mais amigável. Com a recente “descoberta” da reimpressão de títulos mais antiguinhos, logo uma nova geração de leitores poderá descobrir histórias esgotadas como Dragon Ball, Naruto, Hunter x Hunter e tantas outras.