Se engana quem pensa que mangás adultos são feitos apenas com amontoados de cenas de sexo e violência gratuita, há também muitas histórias de mistério, uspense e críticas políticas que poderiam casar com qualquer época da história mundial. Um dos especialistas nesse gênero é Naoki Urasawa, um premiado mangaká que teve três de seus títulos publicados no Brasil e ainda por cima está com uma exposição em São Paulo na Japan House. Afinal, qual o segredo dele?
A judoca premiada
Naoki Urasawa nasceu no começo da década de 1960 e, como toda criança daquela época, foi exposto ao mundo dos mangás através das obras de Osamu Tezuka (o Deus do Mangá). Tetsuwan Atom (ou "Astro Boy" para os ocidentais) era um de seus títulos favoritos, e é até curioso como as aventuras do jovem robô pacifista viriam ainda a influenciar muito sua carreira.
O mangaká começou a trabalhar com quadrinhos para valer no começo dos anos 1980, e teve a proeza de conquistar o prêmio de revelação em uma competição realizada pela editora Shogakukan logo em seu título de estreia. O reconhecimento lhe rendeu um trabalho fixo como desenhista de um mangá chamado Pineapple Army (1986-1988), mas seu surgimento como um grande artista viria alguns anos depois, em uma empreitada solo muito diferente do que a gente imagina. Com base nos mangás do autor publicados no Brasil é bem normal achar que Naoki Urasawa criou apenas tramas de mistério em sua carreira, mas isso é um engano. Seu primeiro mangá solo de sucesso foi Yawara! (1986-1993), uma história sobre... judô feminino.
A história de Yawara! segue uma linha bem diferente da de outros mangás do autor, e serviu como uma "campanha informal" para a olimpíada de Barcelona de 92, a primeira da história a ter disputa de judô para mulheres. O mangá mostra a vida da jovem Yawara e vemos como ela é forçada a praticar judô por pressão de seu avô, um campeão na categoria. O mangá acompanha a vida de Yawara desde a juventude até terminar a faculdade, mostrando uma evolução e crescimento de personagem que o autor experimentaria ainda em mangás futuros.
O mangá de Yawara foi um estouro no Japão. Observando as boas vendas, o estúdio Madhouse conseguiu os direitos para um anime que durou três anos, com 124 episódios. Em seu mangá seguinte, no entanto, Urasawa já começou a se aprofundar em um tema que passou a dominar: o mistério. Master Keaton (1988-1994) já é uma história mais próxima de seus maiores sucessos e mostra os desafios encarados por um detetive de seguros.
Se você prestou atenção nas datas de publicação dos mangás, deve ter reparado que uma das principais características da carreira de Naoki Urasawa é o hábito pouco saudável de se dedicar a mais de um mangá ao mesmo tempo. Yawara e Master Keaton dividiram a atenção do autor por alguns anos, e isso não afetou a qualidade de ambos. Ou seja, o autor conseguia não se perder ao fazer uma trama de mistério e uma história de judô simultaneamente, um feito formidável.
O monstro...
O ápice da maturidade do trabalho de Naoki Urasawa veio com Monster (1994-2001), um clássico de mistério e suspense. Ambientado na Alemanha, conhecemos o habilidoso cirurgião japonês Kenzo Tenma, que é mestre em operações cerebrais. Indignado pelo hospital ter ordenado que ele priorizasse o atendimento ao prefeito, vítima de um AVC, Tenma opta por salvar a vida de uma criança que havia chegado antes no hospital. Esse foi o maior erro da vida do médico, pois o garoto era um psicopata-mirim e sai pelo país cometendo assassinatos. Tenma abandona a carreira e atravessa a Alemanha para caçar o monstro que ele mesmo salvou.
Em Monster é possível ver as principais características da obra de Naoki Urasawa. Seu traço está longe de ser realista, mas ele retrata pessoas de diferentes etnias com um estilo mais sóbrio do que o mangá tradicional. Os olhos são menores, o detalhamento com o cabelo é impressionante e em muitas vezes parece um quadrinho europeu. No entanto, Urasawa herda dos mangás a agilidade, as cenas de ação bem feitas e os closes cinematográficos em momentos de tensão.
...e os garotos do século XX
Enquanto ainda cuidava da história do doutor Tenma, Urasawa partiu para uma história muito ousada chamada 20th Century Boys (1999-2006). Deixando de lado os protagonistas mais "fantásticos", dessa vez acompanhamos a história de Kenji, um jovem adulto que trabalha na loja de conveniência da família. Alguns atentados terroristas vêm acontecendo em meio às comemorações da chegada do novo século, e Kenji percebe uma coisa: o que está rolando está de acordo com uma história fictícia que ele e seus amigos inventaram na infância. Kenji então precisa reunir seus antigos colegas para descobrir quem está transformando em realidade a brincadeira das crianças.
20th Century Boys é o tipo de mangá que busca surpreender o leitor a cada volume e é até impressionante o quanto ele segura a atenção do público por mais de 20 edições. Mesmo tendo mais time-skips do que o necessário e perdendo o fôlego perto do fim, 20th Century Boys mostra o domínio completo que Urasawa tem da narrativa de seus mangás (falar mais do que isso é spoiler).
Realizando o sonho de infância
Imagina você ser fascinado por um mangá na infância, aí em sua fase adulta você ter a chance de trabalhar com aquela história. Em Pluto (2003-2009), Naoki Urasawa teve a chance de fazer uma releitura adulta de uma história do Astro Boy chamada "Chijou Saidai no Robotto" (algo como "O Maior Robô da Terra").
Enquanto na trama original, criada por Osamu Tezuka na década de 60, tínhamos o Astro Boy lutando contra um robô que saiu destruindo adversários em todo mundo, Naoki Urasawa incluiu uma camada de realismo e contou a história do ponto de vista do vilão. Claro, muitas mudanças foram feitas porque se tratava de um arco de um mangá para crianças, mas o autor conseguiu transformar (com o apoio do colega Takashi Nagasaki e Macoto Tezuka) a trama em um thriller futurista. Muitos consideram sua obra-prima e um dos melhores mangás do gênero já publicados.
O público brasileiro teve a sorte de receber três mangás diferentes de Naoki Urasawa. O primeiro foi Monster, publicado pela Conrad em meados dos anos 2000. Infelizmente o título foi interrompido na metade por causa da crise na editora e só teria uma nova chance em 2012 quando a Panini anunciou sua republicação. Foi a primeira vez que o público brasileiro viu o final de uma obra. Logo depois a Panini trouxe mais dois mangás, 20th Century Boys e Pluto, além de ter anunciado uma republicação de luxo para Monster.
O mais impressionante é que Naoki Urasawa continua na ativa e trabalhando muito até hoje. Enquanto fazia Pluto, já começou o trabalho em Billy Bat (2008-2016), arranjou tempo para um remaster de Master Keaton e atualmente cuida de Renzoku Manga Shousetsu Asadora! (ou apenas "Asadora!"). Se depender dele, ainda teremos muitas histórias de mistério a caminho.