Alguma vez você já assistiu a um anime e ficou pensando que aqueles amigos muito próximos estavam tendo sentimentos além da amizade? Enquanto ficamos em dúvida se os skatistas de Sk8 The Infinity se pegavam fora das câmeras ou se as garotas de Lycoris Recoil trocaram beijos em algum momento do anime, essa é uma boa hora para conversar sobre como a indústria do entretenimento faz uso de algo chamado “queerbait”.
Uma amizade muito, muito forte
Em meados de 2021 me encantei pelo anime The Aquatope on White Sand (Shiroi Suna no Aquatope no original), uma história bem leve sobre uma ex-idol que abandona a carreira artística para trabalhar em um aquário de uma cidade litorânea. O destaque é a amizade profunda (perdão pelo trocadilho oceânico) que nasceu entre Fuuka, a tal cantora, e Kukuru, herdeira do aquário prestes a declarar falência. Mesmo com personalidades distintas, as duas ainda assim criaram uma amizade muito bonita que fez com que vencessem vários conflitos e desafios no decorrer daqueles 24 episódios.
Por ser um anime que poucas pessoas assistiram, afinal os otakus estavam mais interessados em Tokyo Revengers e Mushoku Tensei, não tive qualquer contato com fãs de The Aquatope on White Sand. Ao término do último episódio, procurei comentários para conferir opiniões e me surpreendi com pessoas felizes porque o casal Fuuka e Kukuru teve um final feliz. “Minhas meninas ficaram juntas” escreviam as pessoas enquanto eu pensava “espera aí, elas eram um casal????”. Nesse momento uma retrospectiva da série passou pela minha cabeça, e aí cada olhar, cada choro, cada abraço, cada declaração de afeto, tudo que elas fizeram ganhou um novo significado, como não percebi isso?
Após esse choque, comecei a refletir mais sobre essa espécie de “queerbait”. O termo importado define obras que buscam a atenção (e dinheiro) do público LGBTQIAP+ e fingem ter algum elemento de diversidade, porém isso é sempre feito num subtexto, sem clareza, de forma a não "assustar" o público fora desse meio da diversidade. Sabe quando uma empresa de animação promete seu primeiro personagem de minoria sexual e, quando vemos, se trata de um figurante sem qualquer função na trama? Ou quando uma autora de livros revela que um personagem importante de sua franquia é gay, mas isso em momento algum é abordado na história? São alguns exemplos de queerbait.
Mas se no ocidente essa prática do queerbait parece ser promovida pelo marketing, no mercado asiático a coisa parece funcionar de outra forma. O Japão é um país extremamente conservador, a ponto de até hoje não ser legalizado o casamento igualitário entre pessoas de mesmo sexo. E embora não vejamos tantos episódios de homofobia escancarada no país, há algumas políticas que praticam o preconceito de forma mais velada.
Personagens pertencentes ao grupo LGBTQIAP+ são até comuns no meio de anime e mangá, seja em obras do passado quanto as do presente. Se antigamente a comunidade precisava abraçar personagens como a Ryunosuke de Urusei Yatsura (uma personagem feminina criada pelo pai como homem, uma versão invertida da Bernadete de Chocolate com Pimenta) por ver ali alguma pitada de representatividade, no decorrer dos anos os personagens abertamente diversos foram se tornando frequentes. Temos até exemplos explícitos de relacionamentos de pessoas de mesmo sexo em animes populares, como o casal Haruka e Michiru de Sailor Moon (que em certo ponto da trama até “adotam” uma filha). Isso sem falar da alta popularidade de histórias Boys Love ou Girls Love, focadas em tramas com personagens LGBTQIAP+.
Porém, ao mesmo tempo, existem aquelas obras que estão em um limbo de não sabermos exatamente o que querem mostrar. Revolutionary Girl Utena é um anime clássico dos anos 1990 e conta a história da garota Utena, que se matricula em uma escola particular e, após um duelo de esgrima com um membro da elite, ganha a mão da aluna Anthy. Por mais que o anime de Utena fosse considerado durante muito tempo como uma série sobre um casal sáfico, não há um consenso sobre isso: na versão original em mangá elas são apenas amigas, no anime a história recebeu cores um pouco mais acentuadas e, por fim, o filme ganhou uma leitura bem mais explícita da situação. Sem nunca se definir na série, mas trazendo inúmeras interpretações possíveis com discussão de gênero e sexualidade, Revolutionary Girl Utena é considerado um dos grandes animes de Girls Love (ou yuri, outro termo usado para esse tipo de história).
O que Utena nos mostra é que é possível sim contar uma história claramente sobre personagens LGBTQIAP+, mas sem deixar isso tão na cara. E esse modo de contar histórias tem sido bastante comum no meio de animes para criar histórias sobre casais homoafetivos de forma mais velada.
Skatistas e Assassinas
Dois animes recentes, e muito bons, parecem seguir exatamente a cartilha do “queerbait”, são eles Sk8 The Infinity (2021) e Lycoris Recoil (2022). Como o próprio nome já sugere, o primeiro traz como ambientação o mundo do skateboard. O protagonista da vez é o adolescente Reki que só pensa em andar de skate e participar de perigosas competições clandestinas de corrida/combate em uma obra abandonada. A vida do rapaz de cabelos avermelhados muda para sempre quando Langa, um estrangeiro, se muda para sua cidade e demonstra ter muita habilidade no skate, mesmo sem nunca ter pisado em um. O motivo? Langa veio de um país gélido e tem experiência com snowboard.
Sk8 The Infinity segue todas as convenções de um bom anime de esporte, pois Reki passa a ensinar regras, truques e estratégias para Langa, e logo formam uma linda amizade. Ensinados os fundamentos para Langa (e para nós, público leigo), a série começa a mostrar competições cada vez mais perigosas contra adversários de muita habilidade, até chegar no clímax da história quando Reki se sente deixado de lado e o vilão Adam tenta a todo custo se aproximar de Langa.
A tensão homossexual transborda em Sk8 The Infinity. Claro, Reki e Langa são mostrados como bons amigos, mas há ali uma coisa a mais. Um olhar perdido no horizonte, a felicidade de fazer as coisas juntos, o evidente ciúme e por aí vai. O anime também dá destaque a outros personagens skatistas adultos como Shadow, Cherry e Joe, que têm “vidas comuns” de trabalhador durante o dia e, durante a noite, revelam suas verdadeiras identidades durante os campeonatos de skate. O vilão Adam, uma espécie de Dio de Jojo’s Bizarre Adventure usando skate, também é bem pouco sutil e tem uma clara fixação amorosa pelo Langa, porém sem nunca deixar isso explícito com palavras.
Animes de esporte já costumam ser obras que naturalmente atraem torcida por relacionamentos homoafetivos, vamos lembrar que Captain Tsubasa (Super Campeões no Brasil) deu muita lenha para artistas criarem doujinshis (fanzines) de relacionamentos entre os jogadores, então não é estranho imaginar que Sk8 The Infinity foi abraçado por quem ama shippar rapazes. Há inúmeras artes de fãs mostrando relacionamentos entre os personagens, e episódios como os da ida à praia colocam lenha em inúmeros debates sobre “eles são ou não são gays?”.
Já Lycoris Recoil é um dos melhores animes do ano passado e conta a história de uma organização que recruta adolescentes órfãs para que atuem como um grupo de assassinas armadas cujo objetivo é prevenir crimes. No começo da trama vemos Takina ser afastada da organização após desobedecer sua superior e, assim, é enviada para trabalhar com Chisato, que defende solucionar os crimes de forma mais pacífica, com armas menos letais. No decorrer do anime, que é praticamente um John Wick com garotas adolescentes, acompanhamos uma trama política maior ao fundo, ao mesmo tempo que vemos nascer um forte sentimento de amizade entre Takina e Chisato.
Parece ser impossível falar que as duas garotas não formam um casal. Entre trocas de tiros e fugas em vans, as duas curtem dias de compra, vão a passeios culturais, trocam presentes e demonstram um carinho crescente a cada episódio. Mesmo sem mostrar um único beijinho, o anime consegue construir uma evidente relação amorosa sólida de forma que o espectador fica aflito quando, em um ponto da reta final, a trama parece insinuar que as duas podem não ficar juntas.
Os motivos para o “queerbait”
Essa diferença de abordagem entre produções ocidentais e asiáticas nos faz cair em dúvidas, afinal o queerbait é uma característica bastante negativa em séries e filmes produzidos deste lado do globo. Afinal, estaria o Japão usando a mesma estratégia para atrair público LGBTQIAP+, oferecendo migalhas de representatividade em troca de dinheiro? Bem, no meio otaku a coisa é mais complexa.
Para Guto Nunes, produtor de conteúdo sobre obras Boys Love no YouTube, é importante analisar cada caso separadamente, até por não termos tantas informações sobre os bastidores de produções asiáticas: “Sk8 The Infinity, por exemplo, eu acho que é mais característica da criadora/diretora que sempre cria uns relacionamentos bem sensíveis e abre margem pra gente abraçar”. Guto se refere a Hiroko Utsumi, responsável pela criação do anime de skatistas e que também é autora de outra obra bastante lembrada pela diversidade sutil: o anime de nadadores FREE.
Guto considera que algumas obras mais explícitas como Sarazanmai e Yuri On Ice!!! mostram que levar a narrativa de qualquer obra para um lado mais afetivo permite que se explore muito mais dela, mesmo fora de um anime de romance. “Acho que o mercado em si de animes meio que limita um pouco até onde alguma produções ‘podem ir’ e isso se confunde com queerbait”, argumenta o produtor de conteúdo.
Quem também percebe essa estrutura de história como algo comum à indústria dos animes e mangás é a Pah, criadora de conteúdo otaku e co-host do Projeto Tanoshii: “Eu acredito na verdade que animes com queerbait -ou com essa interpretação dos fãs entenderem como casais como homoafetivo- sempre existiram em algum nível no Japão. O fã de cultura pop deixa isso passar várias vezes, mas mesmo se a gente pega animes antigos existem ali alguns subtextos, algumas interpretações, tal como a gente já tinha na cultura ocidental, como em Star Trek”, explica. Inclusive Pah não acredita que estamos testemunhando um aumento desse tipo de série, e sim que se trata apenas de um reflexo natural do aumento da indústria otaku como um todo.
Algo mencionado pela produtora de conteúdo e bastante relevante para essa discussão são os personagens de séries famosas que os fãs acabam torcendo por casais homoafetivos. Muito antes de ter gente enxergando um casal entre Midoriya e Bakugo em My Hero Academia, a internet já era inundada por artes de relacionamentos tórridos entre Naruto e Sasuke. “Mesmo se você assiste aos grandes mainstreams, um Demon Slayer - Kimetsu no Yaiba da vida, dependendo de como os fãs respiram aquela obra, eles conseguem ali entender e até shippar personagens que não necessariamente foram pensados para serem queerbait” comentou Pah.
Mas nisso chegamos à questão mais importante deste assunto: se essa torcida existe em séries como Sk8 The Infinity e Lycoris Recoil, por que essas séries colocam personagens como bons amigos e não como algo a mais? Pois bem, a conclusão parece estar bem relacionada ao conservadorismo do Japão, algo como se tivessem medo de afastar o público que espera personagens heterossexuais. Sobre isso, Guto Nunes opina que “quem vê isso como um problema já se afastou, quem ainda consome costuma ver como parte importante da obra. Eu honestamente acho que ‘oficializar’ tem menos chances de causar um afastamento do que negar a existência de algo”. Já Pah comenta que mesmo sendo um mercado rentável e tendo a força dos mangás BL/GL, poucas obras dessas mais explícitas recebem mais atenção das produtoras de anime.
"Às vezes eles se tornam doramas, ou filmes, ou só ficam em mangá mesmo (...). Muitas produtoras podem ter esse receio de entender que a obra que ele estão fazendo é BL, por exemplo. E também pode esbarrar em questões de faixa etária, onde aquilo pode passar, onde não pode passar", explicou a criadora de conteúdo. Ela ainda afirma que a falta de leis que garantam direitos à população LGBTQIAP+ também pode ser um sinal de que as empresas responsáveis por produzir animes ainda não têm certeza se o conteúdo menos sutil será bem aceito ou não.
Ou seja, talvez vejamos alguma mudança só quando enfim as leis de lá forem revistas para abraçar a comunidade.
Onde assistir?
Mesmo sem uma conclusão a respeito da questão do queerbait em animes, temos muitas séries para sugerir que se encaixam nesse tipo de história. A principal recomendação é Sk8 The Infinity e Lycoris Recoil, afinal além de ótimos os dois estão disponíveis oficialmente no Brasil na Crunchyroll, tanto com legenda quanto com dublagem em português.
Outras produções citadas como Sarazanmai, Yuri on Ice!!!, FREE e Sailor Moon (no caso, a série Crystal) podem também ser vistas na plataforma de streaming (inclusive FREE também tem dublagem!). E se quiser conferir The Aquatope on White Sand para apontar o dedo rir por eu não ter percebido que a amizade das duas meninas poderia ter um significado a mais, o anime está também na Crunchyroll.